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Blog do Vavá da Luz

BASTO, O LOUCO ( Ádney Souza )

adney
Grande festa na pequena cidade do interior do Estado. A banda já acordara a maioria da população com seus dobrados desde as cinco da manhã, anunciando que o dia seria especial.

 

Os meios-fios receberam uma demão rejuvenescedora de cal durante a semana. Faixas em pontos específicos, com letreiros bem visíveis, dedicavam explicitamente mensagens de boas-vindas ao governador e toda sua comitiva. O principal chefe estadual vinha pessoalmente entregar um ônibus escolar, uma retroescavadeira e inaugurar uma creche.

 

A população estava ansiosa pela chegada do homem que acolhera de braços abertos o pedido suplicante do prefeito da cidade para que as benfeitorias chegassem ao município. 

 

No comércio, nos bares, nas residências, na praça pública, todos comentavam a conquista. Que o prefeito for a um herói em conseguir as máquinas e o novo equipamento público. Que o governador – homem de coração grande -, dentre todos os pedidos de outras localidades, tivera a sensibilidade de compreender a situação do município e resolvera presentear a todos. Que, finalmente, a cidadezinha entrara no caminho do progresso e do desenvolvimento. Que ambos – governador e prefeito – mereciam incontestavelmente ser reeleitos nas próximas eleições.

 

Basto, ainda bêbado da noite passada e cansado por acompanhar a banda na alvorada – onde insistia em imitar o trombonista de vara e entrar vez por outra na formação – perambulava pelas ruas degustando o clima de festa e – literalmente – as doses de cachaça que conseguia com os amigos nas mesas dos bares. 

 

Basto se tornou mendigo e alcoólatra desde sua juventude. Seu sonho era se formar em Direito e ser um grande advogado “para livrar o sofrido povo das mazelas do capitalismo e da perseguição das classes opressoras que copiavam as aristocracias europeias, eslovacas e dinamarquesas, como também defender a distribuição equitativa dos royalties da camada de pré-sal entre as criancinhas e Ronaldinho Gaúcho na seleção brasileira”. 

 

Como nunca conseguira passar nos vestibulares, entrou em surto psicótico e adotou o personagem do advogado das massas, com discursos inflamados e confusos que arrancavam aplausos e risadas dos ouvintes da cidade. Também despertava vez por outra ódio de alguns políticos locais.

 

Andava sempre com o mesmo paletó preto surrado e gravata rosa com o desenho de uma mulher de biquíni na ponta, presente dos moleques da cidade que assistiam a Os Trapalhões na televisão. Bebia e comia o que lhe dessem, o que encontrasse nas mesas ou o que as esmolas poderiam bancar. Não raro, era visto sentado pensativo pitando um cigarro pé-de-burro e balançando afirmativamente a cabeça como se estivesse , a cada trago, desvendando os maiores enigmas da humanidade. “E aí, Bastos? Bora tomar uma?”. “Agora não. Estou concatenando minhas ideias para disciplinar meus neurônios no sentido de que – unidos – possam juntar forças e explicar – de uma vez por todas – o mistério do Triângulo das Bermudas e de quem matou Odete Roitman”.

 

Dormia na Casa Paroquial ou no terraço de Dona Glorinha – que também frequentemente lhe socorria com um prato de comida, apesar das reclamações de seu esposo ex-combatente da Segunda Grande Guerra.

 

De tanto filosofar, beber e bater perna pela cidade, Basto nem tinha percebido o tempo passar. Tomou um susto quando espocaram os primeiros foguetões. O homem tinha chegado!

Saiu a banda e entrou a orquestra. Na verdade, era apenas uma seleção resumida dos melhores músicos da banda que tocavam os instrumentos mais apropriados para executar frevos, marchas e sambas. E tome tarol, bumbo, piston, sax e trombone, atacando inicialmente o clássico pot-pourri que começava com Vassourinha.

 

Meia dúzia de meninas “socialmente suspeitas”” e dois travestis, vindos da famosa e badalada Rua do Cemitério, dançavam animadamente na frente da orquestra, vestidos todos com camisetas com as fotos do governador e do prefeito, balançando enormes bandeiras da recém fechada coligação dos partidos de ambos. 

 

No meio da multidão, surgem os dois políticos sorridentes apertando as mãos de quem aparecia pela frente e beijando velhinhas e criancinhas. O carro de som chamava pelo V da vitória dos presentes. O palanque – um caminhão Mercedes- Benz 1313, ano 1985, com uma grande arriada para subida das autoridades – estava todo enfeitado de bandeirolas da cor dos partidos e mais faixas com elogios.

 

Os dois heróis foram arrancados dos braços dos fanáticos simpatizantes e abduzidos por aqueles que já estavam em cima do palanque. 

O locutor da campanha – e de quem oferecesse mais dinheiro – anunciou estridentemente a chegada dos dois políticos: “Portanto, uma salva de palmas para o nosso querido governador e nosso já reeleito prefeito! Daqui a pouco, sairemos numa enorme passeata”. E tome mais palmas, V da vitória, foguetões, Vassourinha de novo, travesti gritando mais que todos, meninos assobiando, dois bêbados brigando, umas velhinhas chorando. 

 

Passado o momento de euforia tresloucada coletiva, o locutor enfim proclama que o governador fizesse uso da palavra e comunicasse oficialmente os presentes trazidos de bom coração à população.

Fez-se aquele intervalo de silêncio entre o final da fala do locutor, do trecho de Vassourinha – de novo – e do início do discurso do governador.

Neste exato momento, aproveitando essa pequena lacuna de curto intervalo, Basto – do meio da multidão, equilibrado em cima de dois tamboretes e seguro por dois colegas de garrafa – abre os braços e começa a discursar.

 

“Parabéns, ó povo de humilde coração e raciocínio. Quero cumprimentar a todos vocês por esses benefícios trazidos pra si próprios. Sim. Foram vocês mesmos que – trabalhando um ano todo – conseguiram contribuir com quatro meses de seus impostos para investir neste ônibus escolar, retroescavadeira e numa creche nova.” O governador e o prefeito se entreolharam cismados e com sorrisos amarelos.

“Essa burguesia ariana e suástica pensa que nos embriagam com suas pseudo oferendas cuja origem de recursos vem de nós mesmos. De nosso suor. De nossa labuta.”

 

“Sede pobres de bolso e posses, não de espírito e perspicácia! Não percebem que os bens que nos oferecem já são nossos de direito e por obrigação? É como se eu agradecesse emocionado ao dono do bar – e lhe jurasse fidelidade pelo resto da vida – pela pinga derramada em meu copo, cujo direito de consumir eu já tinha adquirido quando desembolsei a quantia cobrada”.

 

“Obrigado a todos vocês por essas aquisições! Esses dois espectros de anjos – mais luciferianos do que emanuelísticos – querem deter os louros e as glórias sem ter ao menos participado da competição”. Caiu do tamborete. Foi recolocado rapidamente pelos seus colegas. Ajeitou a gravata, deu um trago na bituca de pé-de-burro há tempo apagada e continuou:

“Festa linda e empolgante! Que inauguremos, nós mesmos, mais equipamentos públicos e mais máquinas novas. Que nos unamos para cobrar da justiça a queda bastilhiana dessa raça maquiavélica e reptícia que se diz nos representar e conduzir. Que a partir de hoje, não elejamos mais nenhum crápula lampiônico e Antonio Silvinista. Vamos votar em nós mesmos!”. 

 

Com essas palavras, foi arrancado abruptamente de cima de seu improvisado púlpito por três marmanjos que faziam a segurança do governador. A polícia foi chamada e ele foi levado – tal como acontecia com frequência – para o xilindró.

 

A população enfurecida gritava “Lincha, lincha, lincha…”. “Quem se viu desrespeitar homens tão importantes e nobres? Esse doido varrido merecia nunca mais sair da cadeia. Peia nesse abilolado!”.

Basto, já sentado no chão imundo da cadeia, continuava a fumar seu cigarro apagado, balançando sua cabeça e balbuciando coisas ininteligíveis para si mesmo. Estava tendo outra crise neurótica.

 

Lá fora, a população voltava a agradecer a bondade de seus líderes e jurar apoio para as próximas eleições. Tudo estava novamente dentro da normalidade!

 

Ádney Souza . Campina Grande, Abril/2014

2 comentários em “BASTO, O LOUCO ( Ádney Souza )”

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