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Blog do Vavá da Luz

UMA HISTORIA DE SECA NA VIDA REAL (por Tião Lucena)

Miguel Fotógrafo arrancou a máquina lambe­lambe das costas, enxugou o suor do rosto e depois de um ufa de desengano, avisou a Emilia que voltara zerado da feira de Carnaíba. Ninguém tirou retrato mais uma vez, de modo que não havia dinheiro para fazer a feira, comprar a comida dos sambudos.

O jeito é vender a casa!­, sentenciou.

A casa que ele construíra com as próprias mãos, contando com a ajuda dos meninos que bateram os tijolos, ergueram os andaimes e carregaram nas costas as tinas de barro com cal para levantar as

paredes, e que ele prometera ser o lugar definitivo da família.

Zé Alvelino tá num pé de noutro pra comprar.

Nove contos de réis.

Deu pra pagar a conta da bodega, reabrir o crédito e alugar uma casinha menor.

A seca já durava cinco anos. Terra rachada, galhos queimados pelo sol inclemente, carcaças de bichos espalhadas pelas estradas fazendo a festa dos urubus.

Os açudes secaram. Até o Jatobá, enorme, construído para enfrentar 10 anos de estiagem, se evaporara.

Viúvas de maridos vivos cantavam finados na porta da igreja, Frei Anscário, o alemão, soltava pragas em latim. Ninguém dizia mais “bendito louvado seja”, porque a fé fora embora com as chuvas.Mandaram um feijão preto, importado dos Estados Unidos, para suprir a fome dos sertanejos. O bicho era tão ruim que não amolecia nem com fogo de três dias. Encruava, mas não cozinhava.

Anunciaram a abertura de frentes na estrada do Canoa. Houve vivas, depois desenganos. Roubaram o dinheiro da emergência. Alguém muito sabido ficou com o dinheiro e para os cassacos sobraram o cabo da pá e o pau do enxadeco.

Isso sem falar das tragédias, como aquela de Santa Luzia, cantada em correspondência lírica enviada ao padre Frei Anscário pelo poeta Lulu Cristóvão:

“Maria vivia na zona rural de Santa Luzia, numa terra verde, cheia de rios, de açudes, de pássaros, de bichos, de muita fartura e muita alegria. Os campos de Maria eram enfeitados de pendões de milho, pendões que cresciam na direção do céu agradecendo as chuvas que de lá caiam para espalhar alegria entre os agricultores e filhos de agricultores, que cultivavam a terra e dela tiravam a seiva da vida, o sustento do corpo.

Os amiguinhos de Maria juntavam­se a ela nas brincadeiras de criança. Corriam pelos caminhos estreitos de terra batida, banhavam­se nos córregos, riachos e açudes, voavam com as borboletas coloridas por sobre os matos em flor e sonhavam com a fada madrinha que um dia as levariam ao mundo encantado das estórias de trancoso, aquelas estórias que entravam pela perna de pinto, saiam pela de pato, e o senhor rei mandava que contassem

vinte e quatro.

Até que veio a seca.

No princípio quase não foi notada. Ela chegou de mansinho, traiçoeira, silenciosa, igual a cobra venenosa que não perde o bote, nem a presa. Pouco a pouco se apoderou de tudo, do chão, do ar, das matas e dos açudes. O mato perdeu o verde, os açudes

ficaram sem água, o ar quente esturricou e asfixiou os pulmões. A vida se foi.

Onde antes havia água em abundância, havia agora lama seca, rachada. Os peixes em pouco tempo morreram e secaram. Os animais, sem água e sem pasto, foram morrendo um atrás do outro. As mulheres se tornaram viúvas de maridos vivos. Os maridos partiram como retirantes para outras terras, buscando sobrevivência, deixando no seu rastro o lar de antigamente, os seus amores e os seus sonhos.

As estradas se encheram de nômades em procissão. Quem tinha força, caminhava fugindo, os de pouca força morriam no caminho. As estradas encheram­se de cruzes que marcavam os locais onde eles morreram de fome e de sede.

A mãe de Maria foi alistada na frente de emergência do Governo. Todo dia de manhã levantava­se pela madrugada, improvisava alguma coisa para Maria comer, deixava­a dormindo, saía de casa e ia trabalhar. Maria ficava só, o dia todo, olhando as telhas, puxando conversa com a solidão.

Um dia a mãe de Maria foi para a frente de emergência e,quando Maria acordou, sentiu saudades dela. Levantou­se e saiu pela caatinga em busca da mãe. Andou, andou, subiu ladeiras, caminhou pelas areias quentes dos riachos secos, pisou com seus pezinhos

descalços as pedras quentes dos lagedos esturricados, mas nada de encontrar a mãe. O céu ficou cinzento, o sol inclemente botou seus raios para fora, a pele de Maria começou a queimar, a pedir água.

Maria cansou, sentou­se num canto de cerca buscando descanso, fechou seus olhinhos e viu aquela fada madrinha dos seus sonhos infantis chegar, pegá­la no colo e levá­la para o mundo faz de conta das estórias de trancoso.

Três dias depois a mãe de Maria, com a ajuda de vizinhos, a encontrou no canto de cerca, sentada, braços cruzados sobre o peito, olhinhos fechados, cabelos em desalinho. No seu rosto branco como a neve não havia, porém, sinais de sofrimento. Ao contrário,Maria tinha nos lábios o sorriso de quem se encantou deste mundo, trocando­o por outro onde as crianças não sofrem e escutam estórias de fadas.

1 comentário em “UMA HISTORIA DE SECA NA VIDA REAL (por Tião Lucena)”

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