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Enchente e cogumelo: os 50 anos de ‘Paêbirú’, de Zé Ramalho e Lula Côrtes

Talvez pareça improvável a quem só conheça Zé Ramalho de “Avôhai”, “Chão de Giz” ou “Admirável Gado Novo”, mas em 1974 o então jovem músico paraibano de 26 anos se juntou ao igualmente jovem artista pernambucano Lula Côrtes e sua companheira, a cineasta Kátia Mesel, para uma viagem mística.

O mergulho ao interior de sua terra natal, rumo à Pedra do Ingá e às lendas de Sumé, entidade mitológica dos povos Tupi que teria estado entre eles antes da chegada dos colonizadores.

A longa jornada do trio — movida a cogumelos de Zebu, aqueles mesmos cantados por Rita Lee um ano antes em ‘Ando Jururu’ – em direção ao sítio arqueológico e seus mistérios.

O que deu origem a um dos discos que por décadas permaneceu como o mais valioso já produzido no Brasil: o desafiador, maluco e sensacional “Paêbirú”, que completa 50 anos em 2025.

Na ausência de uma data de lançamento oficial, o marco é lembrado na data de aniversário de Lula Côrtes. O músico, que morreu em 2011, completaria 76 anos nesta sexta-feira (9).

O nome do álbum vem da palavra Tupi que significa “caminho da Montanha do Sol”, “caminho que vai ao céu” ou simplesmente “caminho ao peru” —e marca a rota que liga o Brasil ao Peru atravessando Argentina, Paraguai e Bolívia pela Cordilheira dos Andes até se conectar à civilização Inca, reforçando seu caráter esotérico.

Detalhe da parte interna do álbum 'Paebirú'

Viagem sonora
Único álbum da parceria entre Zé e Lula, “Paêbirú” é um trabalho ousado, mesmo em se tratando da década de 70. Lançado como um disco de vinil duplo, seus quatro lados foram batizados como os quatro elementos da natureza, “Terra”, “Ar”, “Fogo” e “Água”.

Neles, a dupla, acompanhada de vários músicos como Alceu Valença e Geraldo Azevedo, que anos mais tarde se tornariam muito populares, buscou transformar em música as experiências alucinógenas e místicas do caminho da montanha do sol e seus cogumelos.

O resultado é uma mistura livre de jazz, rock, experimentações, ritmos nordestinos, candomblé, música indígena – trilha da jornada em busca dos conhecimentos de Sumé.

Parece intrincado, mas o tempo fluido de “Paêbiru” em quase nada soa como os discos da primeira onda lisérgica do final dos anos 60.

Lula e Zé herdaram dos anos anteriores o fuzz das guitarras, mas dando um passo à frente à mistura feita por bandas como Os Mutantes, incorporando o rock à uma psicodelia genuinamente brasileira, e não vice-versa.

O raro vinil de 'Paêbirú' ganhou reedição

Depois da enchente
A prensagem original do álbum, lançado pela gravadora local de Recife Rozenblit, teve tiragem única de 1.300 cópias.

Mas uma grande enchente do rio Capibaribe no mesmo ano de 1975 levou com ela 1.000 destes vinis – incluindo os livretos que os acompanhavam e traziam informações sobre a região da Pedra do Ingá e o mágico caminho da montanha do sol.

Os 300 restantes se tornaram itens raros para colecionadores, chegando a valer em média R$ 4.000. Em 2019, “Paêbiru” foi relançado como bolachão no Brasil a partir das fitas originais, salvas por uma alma iluminada (ou talvez pelo acaso) durante a enchente.

Com toda essa aura mística que o acompanha e sua riqueza musical sem amarras estéticas – além, claro, das tantas décadas em que passou como ‘pedra preciosa’ – “Paêbiru” vem ao longo de meio século encantando quem se aventura a desbravá-lo.

Das “Trilhas de Sumé” que abrem os caminhos da terra até a “Beira Mar”, que encerra a viagem das águas.

Como cantava outro maluco que também lançou um disco raro há 50 anos, “que beleza é sentir a natureza…”

1 comentário em “Enchente e cogumelo: os 50 anos de ‘Paêbirú’, de Zé Ramalho e Lula Côrtes”

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