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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : Uma doença não é uma coisa

O jornalista Jeff Schmidt requereu um teste ao stresse quando tinha cerca de 40 anos, devido a antecedentes familiares de problemas coronários. Quando se dirigiu ao hospital para efetuar o teste prescrito pelo seu médico de família, disseram-lhe que só podiam fazê-lo se apresentasse um diagnóstico. Mas, uma vez que o diagnóstico seria o resultado do teste e não a causa, a situação caiu num impasse. Foi então que Jeff disse ter “arritmia” para poder fazer o teste.

Este incidente diz-nos muito sobre o mundo de hoje. Ao precisar de ter um diagnóstico para podermos ter acesso a exames ou tratamentos pagos, estamos a fabricar cada vez mais etiquetas com cada vez menos significado.

Essas etiquetas são analisadas por epidemiologistas, que tentam ver nelas “novos” padrões de doenças, e são depois enviadas para os bancos de dados das seguradoras. Na realidade, um mesmo diagnóstico pode ajudar a reembolsar um doente ou impedi-lo de ter acesso a um seguro de saúde, algo cada vez mais frequente no contexto económico caótico em que nos encontramos.

Muitos são aqueles que partem do princípio de que certos sintomas são sinal inequívoco de uma determinada doença e de que só precisam de um médico que faça o diagnóstico. Também acreditam que o diagnóstico os conduzirá inevitavelmente a uma cura. Os médicos recebem mais por fazerem testes-diagnóstico do que por examinar ou falar com os pacientes.

Na América, por exemplo, um dos erros mais graves que um médico pode cometer, segundo um juiz, é não ter efetuado um diagnóstico. Muito mais grave do que o doente ter morrido devido a um excesso de exames ou tratamentos. Muitas pessoas pensam que as doenças são “coisas” que possuem uma identidade própria, um “mal” que um diagnóstico vai ajudar a exorcizar. Contudo, muitos médicos acham que as doenças não são “coisas” mas antes conceitos operativos.

Ou seja, o sofrimento é real, mas a doença é uma construção.

Este debate acontece porque vivemos no seio de um sistema que exige que algo só possa ser reembolsado se for uma “doença”. O conceito de “doença” variou ao longo do tempo e muda conforme as culturas. Hoje, a nossa sociedade é que determina que “doença” é algo que provoca uma incapacidade e que “doença” é algo que os médicos tratam.

Atualmente, existem três fenómenos dignos de atenção.

O primeiro é a “doensificação” do que são essencialmente fatores de risco tais como a pressão arterial alta e o colesterol elevado. A pressão arterial muito elevada pode ser considerada uma doença, já que pode levar os vasos sanguíneos do cérebro a rebentar e dar origem a um AVC. Contudo, a pressão arterial moderada é um fator de risco, não uma doença em si. Embora esteja associada a ataques de coração e a AVCs, não significa que estes se materializem em função dela. O mesmo acontece com um grau elevado de colesterol que, não sendo uma doença em si, pode conduzir a um ataque coronário se for muito elevado.

Os fatores de risco são guias úteis em termos médicos, mas a sua “doensificação” causa problemas. Por exemplo, se uma mulher tomar medicamentos para reduzir um nível de pressão arterial moderadamente alto está mais exposta a riscos de que uma que não os toma. É sabido que depois da menopausa a tensão arterial sobe mais nas mulheres do que nos homens em idade comparável. Mas isto não significa que devam ser tratadas como potenciais vítimas de acidentes cardiovasculares.

Os números tornaram-se mais importantes do que os riscos efetivos.

O segundo fenómeno é a “medicalização” de ciclos de vida naturais tais como o parto ou a menopausa, processos normais que são vistos como potenciais “doenças”. Assim sendo, sem dúvida de que haverá sempre maneiras de manter os médicos ocupados, já que estes processos naturais estão sempre a acontecer.

O terceiro fenómeno é a “doensificação” das adições. Alcoolismo, dependência de drogas, dependência amorosa e sexual, são todos encarados como algo que a medicina pode tratar, porque achamos que a medicina pode curar tudo. Na Grã-Bretanha, por exemplo, o alcoolismo não é considerado uma doença. Aliás, na Grã-Bretanha, a estrutura de reembolso dos médicos não depende de algo ser diagnosticado como doença ou não, enquanto nos Estados Unidos o sistema de reembolso dos médicos faz com que seja “útil” diagnosticar o maior número de condições médicas como “doenças”…

Lynn Payer Disease Mongers New York, John Wiley & Sons, Inc. 1992 (Tradução e adaptação)

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