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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : O peru que correu a cidade metido dentro de um cesto

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 Há bem perto de três meses que o Senhor Firmino mantinha, na capoeira do seu quintal, um bonito peru, alimentado a preceito com sopinhas de pão, migas de couves e milho do melhor. Uns dias antes do Natal, o Senhor Firmino agarrou o peru pelas asas, a calcular-lhe o peso, e disse para a mulher: — Está em boa conta.

A mulher do Senhor Firmino fez que sim com a cabeça, limpou as mãos ao avental e foi à cozinha. Ao ver estes preparos, o peru sentiu-se muito levezinho e pensou: «Agora é que é… Ela vem com a faca e…». Afinal, em vez da faca, a mulher do Senhor Firmino trouxe da cozinha uma fita vermelha que atou às pernas do peru, em jeito de laçarote. — O nosso compadre Augusto vai gostar — disse o Senhor Firmino.

A mulher do Senhor Firmino fez que sim com a cabeça e meteu o peru dentro dum cesto. * * * * — Ó mana, venha ver o presente que o compadre Firmino me mandou. Bonito peru! A mana do Senhor Augusto veio da cozinha com uma faca na mão… «Ai! Ai! Ai! Desta é que eu não escapo», pensou o peru, muito encolhido dentro do cesto. — Espere lá, mana! — exclamou o Senhor Augusto. — Este peru tão bonito estava mesmo a calhar para o Doutor Hipólito. Ele tem sido tão atencioso, tão simpático… Que acha, mana? A mana do Senhor Augusto achou bem. * * * * — Senhor doutor, para onde quer que leve o peru? — perguntou a empregada do Doutor Hipólito em pessoa. — Leve-o para a cozinha… «É desta. Desta vez é que é…», pensou o peru todo a tremer e a encher-se de suores frios.

Mas o Doutor Hipólito mudou de ideias: — Nós já temos um peru para a ceia, um outro peru para o dia de Natal, ainda outro para o dia de Ano Novo. Este peru está a mais. Pensando bem, talvez seja mais sensato oferecê-lo ao senhor Inspetor. * * * * — Mais um peru! — disse, muito arreliado, o senhor Inspetor. — Se os vou matar a todos, fico enjoado de peru para toda a vida.

O peru, dentro do cesto, com as patas atadas pelo laçarote vermelho, nem se mexia de tão atrapalhado que estava. — Como é que me hei de livrar deste peru? — dizia o senhor Inspetor. — Já sei. Mandem-no ao senhor Capitão, com os meus cumprimentos. * * * * Pobre peru. Em cada nova casa em que entrava era um desmaio. Sacudido de um lado para o outro, em bolandas de aqui para ali, o infeliz conheceu quase todas as casas dos senhores importantes daquela cidadezinha de província. «Agora é que é!», não era. «Desta não escapo!», escapava. «Ai que eu morro!», não morria. Da casa do senhor Capitão, passou à do senhor Major.

O senhor Major ofereceu-o ao senhor Tenente-Coronel. O senhor Tenente-Coronel ofereceu-o ao senhor Brigadeiro. O senhor Brigadeiro não o ofereceu ao senhor General, porque lhe tinham dito que o senhor General só podia comer pescada cozida. Em compensação, ofereceu-o ao senhor Arcebispo, com os seus respeitosos cumprimentos e desejos de Boas-Festas.

Se o peru desse acordo de si, talvez pensasse que, por aquele andar, ainda viria a conhecer o Papa. Mas o pobre peru, mirrado e doente com tantas emoções, já nem forças tinha para pensar o que quer que fosse. Na capoeira do jardim do senhor Arcebispo, havia vinte e três perus, onze gansos, quinze patos e outros bicos de menor importância. — Vou dar um bodo aos pobres. No dia de Natal não quero uma única ave na minha capoeira — ordenou o piedoso Arcebispo. E nem houve tempo para desatar as pernas ao desgraçado peru. Cumprindo as ordens do senhor Arcebispo, os criados começaram imediatamente a fazer a distribuição das galinhas, galos, patos, gansos e perus pelos pobres mais necessitados da diocese.

O peru do laçarote coube ao Jacinto, o Jacinto carpinteiro. Juntou-se a família toda para ver o peru. — Como o senhor Arcebispo é bondoso — dizia a mulher do Jacinto. — Que bonito peru — dizia o sogro do Jacinto. — Um laçalote encanado! — dizia o filho mais novo do Jacinto, um trapalhão a falar. «Desta não me salvo!», pensava, todo chupadinho de medo, o peru. — É pena que já tenham deitado o bacalhau de molho para a ceia — monologava o Jacinto. — Talvez não fosse mal feito mandar o peru de presente ao meu patrão… Ele ficava satisfeito e como eu lhe devo uns certos favores… * * * * — Olha bem para este peru que o pequeno do Jacinto me trouxe.

Não parece mesmo o nosso peru? — perguntou o Senhor Firmino à mulher. A mulher do Senhor Firmino fez que sim com a cabeça. — Ainda vem com o laçarote e tudo! Que voltas teria ele dado até voltar cá para casa? O Senhor Firmino nunca se espantara tanto. — E como ele está magro, coitado! Até parece que mirrou pelo caminho! Com tantos sustos, o peru ficara só em penas, pele e ossos.

Nem uma fibrazinha de carne que prestasse. — Volta para a capoeira — decidiu o Senhor Firmino. — Ele que engorde, porque no próximo Natal vamos dá-lo… — Ao compadre Augusto, nunca mais! — interrompeu a mulher. — Claro que não. Vamos dá-lo…ao Doutor Hipólito. Aposto contigo em como o endemoninhado do peru vem cá parar outra vez. Tinha a sua graça! * * * * Pois claro que tinha a sua graça. Eu é que não estou para contar outra vez a mesma história. E o peru que goze muitos anos regalados de boa vida!…

 

António Torrado

Dezembro à porta Porto, Edições Asa, 2005

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