Amigos do coração
ão pode haver melhores amigos do que Lulai e Artur.
Vão juntos para a escola, sentam-se juntos, e brincam juntos no recreio.
Mas, um dia, andaram à bulha no recreio do colégio.
Os outros meninos avisaram a Professora Amparo que veio separá-los, e que os manteve
afastados até as aulas terminarem.
Ao sair das aulas, Lulai está muito sisuda.
Há muito tempo que a mãe não a via tão séria.
— Passou-se alguma coisa no colégio? — perguntou a mãe.
— Não, não se passou nada, peguei-me com o Artur, mas nada de especial.
Mas a mãe, intuitiva, como quase todas as mães, sabia que tinha acontecido algo que
tinha partido o coração à filha.
Não insistiu na pergunta, mas, quando chegaram a casa, viu como Lulai correu para a
casa de banho e aí permaneceu durante meia hora.
Lulai colocara um banquinho em frente do espelho e tinha subido para se ver melhor.
Mas, como queria ver o rosto de perto, de muito pertinho, meteu-se dentro do lavatório.
É muito raro alguém andar à briga com um amigo, e muito menos com o melhor amigo.
Mas, ainda é mais raro que o melhor amigo te recorde algo que não gostas de lembrar, algo que
te põe triste, uma coisa em que já não pensas e que parece que já está muito afastada…
N
E, de repente, quando alguém a recorda, volta a fazer doer como se acabasse de
acontecer.
Entre todos os insultos que tinham trocado entre si, ao Artur tinha escapado o mais feio
de todos… Depois de Lulai lhe dizer que nunca mais ia voltar a ser sua amiga, Artur respondeulhe
que, por ele, ela bem podia ir para a China e nunca mais voltar.
Lulai recorda tudo isso com mágoa, aproxima-se ainda mais do espelho, e dos olhos
pequenos e inclinados caem algumas lágrimas.
Lulai quase se esqueceu da China. Nem sequer a boneca vestida com um quimono, que
está no quarto, e que lhe foi oferecida pela mãe, a faz pensar no seu país de outrora. Nem
sequer se lembra muito bem do dia em que chegou a esta casa, à sua casa. Sabe, porque a mãe
lhe contou, e o pai também, que não saiu da barriga da mãe, como todos os meninos da turma.
Sabe que não esteve aqui desde o primeiro momento, mas nunca fala disso, e os meninos
nunca a interrogam sobre nada, porque a conhecem desde que começou a ir às aulas.
Só quando chega alguém novo e pergunta: «E tu, porque é que és chinesa se a tua mãe
não é chinesa?», só então Lulai dá a resposta que o pai lhe ensinou: «Porque os meus pais
fizeram uma longa viagem para me irem buscar».
Há muito tempo que as recordações mais antigas não lhe vinham à cabeça, mas agora,
sem poder evitar, recorda-se do primeiro dia em que viu os pais. Pareceram-lhe estranhos,
quase de outro planeta: com os narizes muito grandes, e os olhos arregalados. Nunca tinha
visto uma mulher com cabelo de outra cor que não fosse preto, pelo que a cor clara do cabelo
da mãe lhe pareceu horrível. E também não gostou daquele homem que tinha pelos na cara.
Recorda-se agora, como se tudo voltasse a acontecer e ela não pudesse apagá-lo da
mente, que fez aquela longa viagem sempre a chorar e com aqueles seres estranhos que lhe
falavam, embora ela não entendesse nada do que diziam, e que a beijavam contra a sua
vontade.
E depois chegou a esta cidade onde toda a gente é tão diferente: na rua todos têm os
narizes enormes, o cabelo às cores, e os olhos tão grandes que metem medo.
Quando é que deixou de sentir esse medo?
Entretanto, passaram-se três anos, e Lulai nem sequer se deu conta do tempo. Há muito
tempo já que acha que tem a mãe mais bonita do mundo. Não é por ela o pensar, é que é
mesmo a mais bonita.
Lulai olha-se ao espelho e abre muito os olhos.
Gostaria de os ter grandes, e de os ter em linha reta, gostava tanto de se parecer com ela!
Agora é Lulai quem se sente diferente no meio de toda a gente.
À porta da casa de banho, a mãe chama-a:
— Que fazes, meu amor?
— Nada, já saio.
— Precisas de alguma coisa?
— Nãooo… — mas saiu-lhe um «não» muito triste.
A mãe entra na casa de banho e vê-a ali, tão encolhida, tão pequenina que quase podia
dormir como um gato enrolado no lavatório.
— O que é que se passa com a minha menina?
E sem esperar resposta, pega nela e leva-a para a sala.
Ficam abraçadas durante bastante tempo, em silêncio.
A mãe enche Lulai de beijos, e Lulai não consegue conter as lágrimas que lhe correm
silenciosas pela face.
— Lulai Violeta — diz-lhe a mãe enquanto a beija. — Que sorte que é ter dois nomes,
nem toda a gente tem dois nomes. Qual deles preferes?
— Violeta — responde a menina muito baixinho.
— Mas quando te chamo Violeta não respondes.
— Porque me esqueço. Não gosto de Lulai.
— Eu gosto. Gosto que tu tenhas o teu nome antigo e o teu nome novo.
Lulai começa a suspeitar que a mãe se apercebeu do motivo de tanta tristeza.
— Alguém te insultou na escola, alguém te disse algo de que não gostaste?
— Sim, mas não importa.
— O que te disseram?
— Não me lembro.
— Bem, se entretanto te lembrares, contas-me.
O pai chegou às sete horas, como habitualmente. Enquanto Lulai toma banho, ouve os
pais falarem enquanto preparam o jantar. Não sabe do que falam, mas gosta de os ouvir falar
ao longe.
Lulai continua calada, sem saber o que fazer para que a tristeza desapareça.
Depois do jantar, o pai leva-a em braços até ao quarto, mas num só braço porque Lulai
pesa menos do que uma pena. Já com Lulai na cama, o pai conta-lhe o conto dos três
porquinhos, e diz-lhe: «Até amanhã, coração».
E todas as noites Lulai corrige o pai porque ele nunca se lembra do conto sem se
enganar. A menina gosta muito de ouvir contar histórias e todas as noites insiste com o pai
para que este lhe conte mais duas.
Mas esta noite Lulai nem corrige o pai nem lhe pede mais histórias…
O pai dá-lhe dois beijos: um em cada um dos olhos.
— E já não te disse muitas vezes do que mais gosto nesta carinha tão bonita, disse ou não
disse?
Lulai diz que sim com a cabeça.
— Não há nada no mundo mais bonito do que os olhos da minha menina. Se alguém te
disser algo que não gostes, se alguém te insultar, promete-me que te vais lembrar do que te
acabo de dizer. Prometes?
Lulai diz que sim com a cabeça. Então o pai apaga a luz e acende uma pequena lâmpada
para que a menina não tenha medo do escuro. Ela sabe que antes de adormecer
profundamente virá a mãe para lhe dar o último beijo do dia.
Lulai sente agora uma estranha felicidade. É estranha porque continua a sentir-se um
pouco triste por tudo o que se passou no recreio, mas sente os olhos fecharem-se enquanto
ouve os pais a conversar no quarto ao lado. Não sabe do que falam, mas sente-se embalada
pelas vozes que a ajudam a adormecer.
Na manhã seguinte acorda muito mais alegre. Toma as vitaminas, bebe o copo de leite
até ao fim e dá um beijo de despedida a todos os bonecos antes de sair. Mas quando começam
a descer as escadas, lembra-se que Artur não está à sua espera na entrada do prédio. Está
mesmo muito zangada com ele, mas a ideia de ter de ir todos os dias sozinha com a mãe para o
colégio não lhe agrada nada.
Quando vê Artur e a mãe à espera no banco da rua, o coração dispara. Não sabe o que
fazer, se passar ao largo ou se dizer «olá».
Ainda bem que não tem de decidir porque a mãe de Artur diz:
— Acho que o Artur tem uma coisa muito importante para te dizer, Lulai.
Artur olha para o chão muito sério.
— Artur, o que é que me querias dizer?
—Tens que me perdoar — diz o amigo sem deixar de olhar para o chão.
— Não — diz a mãe, — a Lulai não tem que te perdoar, és tu que pedes que te perdoe.
— Isso — diz Artur.
— E que mais?
— Não voltarei mais a insultar-te.
— Diz alguma coisa — pede a mãe dirigindo-se a Lulai. — Desculpas o teu amigo?
Lulai diz que sim com a cabeça.
— Mas ela empurrou-me! — diz Artur.
— Mas foi sem querer… — declara Lulai.
— Ah, bom — responde Artur.
E os dois começam a andar à frente das mães. Vão calados, caminham silenciosos a olhar
para o chão, ruminando cada um a reconciliação… Mas, por dentro, estão tremendamente
felizes. Se alguém, nesse momento, pudesse ler-lhes o pensamento e o coração, saberia que são
e sempre serão os melhores amigos do mundo!
Elvira Lindo
Amigos del alma
Madrid: Alfaguara, 2004
(Tradução e adaptação)
Muito bom!!!!
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