Não sabíamos quem era o maior, se a cidade ou o rio. A cidade cabia em Pilar; o rio, mesmo grande e poderoso, passava por dentro dela, em alguns dias maior, noutros menor, assim vindo de outros lugares como Salgado, Guarita e Itabaiana, onde inundava casas e o comércio ribeirinho. Não tínhamos noção precisa do seu tamanho, longo como metros de cobra, dizia-se que ele estava sempre indo para o mar. Na nossa imaginação, a pequena Pilar era imensa. Aos nossos olhos de criança, tudo era grande: o nosso estreito quarto; a casa com poucos cômodos; a curta calçada; aquelas ruas, por onde todos corríamos, em distâncias, entre a Igreja e a cadeia, que às vezes se alongavam até o Engenho Corredor.
Para sairmos de casa para a frente da cadeia, pensávamos ir para o prédio que hospedara Dom Pedro II, onde houve a cerimônia do beija-mão, mas nossos pais atribuíam a isso o verbo fugir, porque saímos escondidos… Talvez, por isso, acontecia a sensação de irmos para muito longe. Descreviam como sendo perigoso ir ver gente presa, como pássaros ariscos engaiolados; aproximar-se de “homens maus” que tinham cometido crime; roubado, e pior, matado. Contavam alfeitos que nos assombravam.
Mas, por trás daquelas grossas grades, eles não nos causavam medo. Até, às vezes, sorrindo, correspondiam aos nossos sorrisos e aos olhares curiosos, de inocentes crianças, mas também culpados pela travessura de “fugir de casa” e não temer aproximação com aqueles que, por maldade, má conduta ou inocência, não podiam fugir, até mirando o rio que, ao lado corria fugidio para o mar. Em frente à minha casa, mais precisamente debaixo de pé de fícus, nossos pais se reuniam para trocar conversas sobre tudo, da vida alheia às coisas além do rio e da cidade. Memorizei que pensavam eles que as crianças não ouviam, ou ouvindo, não entendiam, e assim, sobre qualquer assunto, dispensavam discrição. Ainda hoje, preservo esse cenário…
Certo dia, eles silenciaram porque, pela calçada, cercado por dois policiais, um preso se aproximava e tinha sido agraciado a esse passeio, à véspera de se cumprir sua pena, por ter “bolido” com a moça antes de casar. Meu pai o conhecia, era Bento, seu freguês e filho de Zé do Roçado, agricultores na Una de São José. Então, ‘seu’ Inácio dirigiu-se aos policiais: – Dá licença um “particular” com meu conhecido? Foi quando Bento, sorrindo, confessou que estava sendo bem tratado e que seria solto no outro dia. Amargurado ficou, ao saber ele do que se boatava: “Que seria capado, depois solto”. Tinha sido assim a ordem do proprietário de terra, da moça ofendida, que mandava como o delegado ou quase como juiz. Bento ignorava que atrevimento com essas coisas seria apenas compreensível, se praticado pelo coronel, dono de terras. Pensou rápido e pediu para ir ao banheiro, no quintal da minha casa. O cabo autorizou…
Demorado um quarto de hora, não acharam mais o preso. Tinha Bento, diferente de nós crianças, fugido de verdade, atravessado a nado o rio; embrenhando-se pelas matas fechadas e escuras, entre Pilar e Pedras de Fogo. Embora para esse assunto, por muito tempo, tenha sido exigido segredo, naqueles dias, as crianças, de ouvido a ouvido, não paravam de falar da coragem de Bento, que, para não ser castrado, enfrentou a nado o temível rio e, no escuro da noite, as matas, onde se contava haver aparecimento de lobisomem e da Comadre Fulozinha. Enfim, ainda vale dizer: Criança faz que não ouve, mas escuta, compreende e memoriza…
Meus agradecimentos aos leitores e leitoras da minha crônica sobre a fuga de Bento.
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