Pular para o conteúdo

O Sorriso no Velório (Irapuan Sobral)

O sorriso, diante da morte, é um gesto que desafia o rito e, mais do que isso, o profana. Num velório, ele rasga a moldura solene do luto e expõe, sem filtros, a miséria do humano: este ser incapaz de honrar sequer o instante em que a vida se despede.

Não que o velório esteja imune, na forma ortodoxa, à mudança. As ‘incelenças’ (cantadas nos pés, em oposição aos benditos, cantados à cabeça) e o ato de ‘beber o defunto’, no sertão do Nordeste do Brasil, são adaptações culturais que envolvem o encontro solene, seguindo os modos do lugar.

Dos tantos velórios que fui, acompanhando Marah, mais agravei o meu medo de almas, trazendo detalhes curiosos e engraçados, do que saudades. Entretanto, sempre fui silêncio e olhar.

Henri Bergson, em seu tratado O Riso, mostra que o riso é uma reação social à rigidez, uma correção espontânea das falhas de adaptação à vida, pois, como ele escreve, “rimos toda vez que percebemos em alguém a rigidez mecânica onde se deveria encontrar a flexibilidade da vida.” Mas, num velório, o sorriso não corrige. Não se trata de uma flexão inteligente da vida, mas de inadaptação à morte — a evidência incapaz de reconhecer o que é sagrado.

Em O Nome da Rosa, Umberto Eco dramatiza o medo que a autoridade religiosa tem do riso, pois, como Jorge de Burgos adverte, o riso abala o corpo, deforma a seriedade e dissolve o medo — e sem medo não pode haver fé. Rir à sombra de um caixão é não apenas dissolver o medo, mas insultar a memória.

Nietzsche, em A Gaia Ciência, escreveu: “Somente nós, os que sofremos profundamente, somos capazes do mais profundo prazer.” E é precisamente a ausência desse sofrimento real que faz do sorriso no velório não um gesto trágico, mas um ato vazio: não se ri pela coragem diante do absurdo, mas pela incapacidade de suportá-lo.

Há, ainda, o sorriso de quem quer ser visto — esse, talvez, o mais desprezível. Um sorriso que cintila nos olhos não como compaixão, mas como ambição. No teatro da morte, há quem queira protagonizar, disputar a cena, colecionar olhares enquanto o morto, sem voz, sem réplica, sem luz, aguarda o último ato. É uma heresia à dignidade transformar o velório em palco de exibicionismos, risinhos nervosos ou poses teatrais, velando como cena de ‘meme’ ou corte à postagem.

Entre o deboche e a ânsia de ser notado, o sorriso no velório é um ato de vaidade e de fuga. Ele revela a face mesquinha que, mesmo diante do inevitável, ainda se recusa à humildade. Em vez de reverenciar o silêncio, prefere preencher o vazio com seu ruído frívolo. Em vez de respeitar a memória, transforma o luto em ocasião social.

O sorriso no velório é, enfim, a confissão pública de uma alma que já morreu em vida — pois, como diz Nietzsche em Assim Falou Zaratustra, “eu amo aqueles que sabem rir e chorar com todo o seu coração”, e não os que sorriem sem alma, nem lágrimas, nem reverência.

Compartilhe:    

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *