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Fumaças de Algoritmo (Irapuan Sobral)

Uma crônica sobre o novo papa, o teatro da fé e os bastidores digitais do espírito.

“Fazei-me instrumento…”
Foi com essa nota — entre oração e ironia — que começou o novo concerto de Roma.

A primeira entrevista do Leão foi uma epifania. Não no sentido místico, mas no mais teatral da palavra: uma aparição cuidadosamente encenada. A escolha dele, apesar dos relógios cardinalícios brasileiros, foi consequência — e não apenas da oração, mas da gravidade do sistema. E do tempo. Gravidade, aqui, em dois sentidos: força inevitável e peso político.

Bergoglio vai agora para as estampas de t-shirts, onde já estão seus conterrâneos Ernesto, Diego, Evita e Mujica. É um bom lugar para quem virou ícone de uma esperança fatigada. Depois, as malhas se tornam farrapos — e as cores, memória. Antigas acusações sinistras, sobre silêncios e conveniências com a ditadura argentina, serão absorvidas pela narrativa do papado — se escaparem da história. E o Vaticano sabe escrever narrativas como quem redige evangelhos de ocasião.

Leão XIV, com nome de rei absolutista e vestes minimalistas, apresentou-se com um sorriso comum. Nascido na América e forjado na América do Sul, ele conhece o pragmatismo do Norte e a orfandade carente do Sul. Sua figura parece moldada não por concílios, mas por focus groups.

O espanto de Parolin diante da reação de Prevost quando confirmada a escolha foi um indício. Para o então vice-papa, Leão XIV já parecia escolhido. A senha? A imagem de Trump vestido de Sua Santidade circulando às vésperas do conclave e a visita de J. D. Vance ao Vaticano. Nada mais se improvisa no reino do Espírito Santo.

O discurso sobre liberdade de imprensa na entrevista inaugural apenas reforça a linha editorial. É verdade que há muitos jornalistas presos na China, mas também é verdade que os mais ricos do mundo defendem, com zelo, a liberdade de opinião — desde que ela flua pelas redes que controlam. As big techs, novos doutores da lei digital, zelam pela liberdade como zelariam por uma patente. Leão XIV parece já bem entrosado nesse novo colégio apostólico: o dos algoritmos.

Foi aí que a história sussurrou em latim.

Quando Macron visitou os cardeais, à moda de quem consulta oráculos antes da eleição, o teatro se revelou ainda mais antigo. Parecia Filipe IV, o Belo, em visita à cúria. Faltava apenas Guillaume de Nogaret sussurrando cláusulas de obediência. O trono já não exige penitência do altar — exige alinhamento.

Esqueceram-se de Jacques de Molay, grão-mestre dos Templários, queimado vivo em 1314, na Île des Juifs, no meio do Sena, à vista do Palácio do Louvre, onde o Rei de Ferro, Filipe, assistia com a frieza dos que se acham eternos.
Mas Molay não morreu calado.
Gritou sua profecia como quem dispara uma sentença, não uma praga.
Chamou, um a um, diante do tribunal de Deus:
“Clemente… Guillaume de Nogaret… e tu também, rei Filipe… dentro de um ano estareis diante do Altíssimo!”

E assim foi:
Clemente V, o papa, tombou primeiro.
Nogaret, o executor jurídico, logo em seguida.
Filipe, por fim, no fim do ano, como quem fecha o ciclo da culpa.

A coroa francesa vacilou, a sucessão apodreceu, e um século de guerras se acendeu na poeira daquela fogueira.
Mas ninguém aprende com os mortos quando os vivos estão bem assessorados.

Hoje, o tabuleiro geopolítico gira com novos peões:
– A China, que foi usada para fechar a cortina da União Soviética, agora vê a Índia ser treinada para ocupar seu lugar.
– O Ocidente precisa de mão barata no Oriente, para manter o consumo no Ocidente.
– Quando a China entendeu a manobra, acionou o Paquistão para fustigar a Índia — e manter o campo de produção instável.
É um jogo sem padre, mas com altar.

E para que não reste dúvida de que os ciclos se repetem com novos disfarces, Leão XIV anuncia sua primeira visita internacional: Niceia, hoje na Turquia, a antiga cidade onde, há exatos 1700 anos, Constantino — nascido em Naísso, hoje Niš, na Sérvia, natural também de Tesla — moldou os dogmas da fé cristã ao formato do Império. Agora, Leão retorna a Niceia, lado a lado com o Patriarca Bartolomeu, como quem deseja não discutir dogmas, mas reformatar a unidade moral do Ocidente sob uma nova ortodoxia digitalizada. O símbolo não podia ser mais claro: a ponte entre altar e trono não foi rompida — foi apenas atualizada com Wi-Fi.

E o Vaticano, como nos anos 80, volta à cena.
Antes, João Paulo II foi a voz espiritual da queda da URSS.
Agora, Leão XIV surge como mediador moral de um novo mundo onde a fé precisa continuar compatível com o cartão de crédito.

Se a encíclica da vez ecoa a Rerum Novarum, o que está em jogo já não é a questão operária — mas a preservação do consumo global.
É preciso que o cartão continue passando — da Galeries Lafayette ao Manaíra Shopping, de Paris a João Pessoa.

Leão XIV não foi escolhido para fundar uma nova Igreja.
Foi escolhido para salvar a que ainda paga em doze vezes sem juros.

E que ninguém se iluda:
se a fé move montanhas, o cartão de crédito move multidões — de vitrines em vitrines, de promessas em parcelas.

Enquanto houver fila no caixa e paz no aplicativo, o mundo parece em ordem.
Roma continua eterna.
E o shopping, universal.

Sei não…
Mas aí tem coisa.

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