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Blog do Vavá da Luz

Empregadas às antigas (Ramalho Leite)

Ramalho Leite

Quando eu abri os olhos para a vida já me acostumei a vê-la. Estava na nossa casa desde o casamento de meus pais.Era egressa do Engenho Avenca e  trabalhara na sua Casa Grande tomando conta do menino Waldir dos Santos Lima. Ajudou a me criar e a quase todos os meus irmãos.Na ausência de  minha mãe era a dona da casa e ai daquele que discordasse de suas ordens.        Nos chamava de seus “ filhos brancos”. Mãe solteira, seu filho legitimo foi criado na casa de parentes enquanto ela criava os filhos dos outros. Seu nome era Antonia Flor, mas para todos que com ela conviviam, simplesmente, Tôtô. Não sabia ler nem escrever. Sua grande  alegria era chorar diante da tela do cinema, todos os anos, assistindo à Paixão de Cristo em fita tão desgastada que se partia a cada queda de Jesus. Era  o protótipo da mãe preta do passado, e mesmo sem amamentar os filhos da Sinhá os amava como se saídos da sua própria carne. Esse amor era retribuído na mesma proporção. Casei e  saí de casa. Ela ficou até a sua hora derradeira.

Maria José Dupré, em seu clássico romance “ Éramos Seis”, descreve a despedida de Durvalina, a empregada mandada embora para diminuir as despesas de um lar, agora chefiado por uma viúva:“Os meninos estavam acostumados com ela desde pequeninos e sentiram muito;dois dias depois ela se foi.Antes de deixar a nossa casa,comprou um bule de metal para café e me deu de presente;estava tão comovida que não pode falar.Estendeu o braço para mim sem dizer nada, e eu também estendi o braço e segurei o bule sem poder falar;assim foi a nossa despedida,sem palavras.Saiu pelo portãozinho com a trouxa de roupa e Isabel e Juninho chorando atrás  dela; acompanharam-na até o bonde”.

Os dois exemplos retratam a ligação afetuosa que se costumava estabelecer entre patrões e empregados a serviço do lar. Poderia trazer à baila, também, exemplos de  relações distorcidas e violentas, principalmente contra menores a serviços de patrões desumanos. Severino Ramos em “Os crimes que Abalaram a Paraíba”, arrola um incidente histórico ocorrido em Patos, nos idos de 1923: a menina Francisca conheceu o inferno em vida durante todo o tempo em que passou a viver  em companhia de seus patrões, “ sendo espancada todos os dias a qualquer pretexto ou sem pretexto algum” …Francisca, na sua inocência, chamava a patroa de madrinha; “ mas que não era madrinha nem madrasta, e, sim, carrasco”. O fim trágico dessa criança, espelha a pequenez de muitos que não valorizam o trabalho da empregada domestica e às vezes pretendem reeditar a escravidão.

O romantismo na relação da empregada doméstica com a  família a que serve é coisa do passado. O tratamento deseducado e humilhante que possa alcançar essa convivência, hoje também é um registro raro. A ordem agora é a profissionalização, manifestada na frieza do contrato de trabalho e dos direitos daí advindos.

Nosso corpo legislativo deu igualdade de tratamento ao trabalhador domestico. Salário mínimo garantido; previdência; fundo de garantia; hora extra; férias acrescidas de um terço;décimo terceiro salário, auxilio transporte e para a creche, se houver filhos na idade indicada.Para facilitar a vida dos empregadores, anuncia-se um Supersimples, cujo pagamento daria quitação à previdência e ao fundo de garantia em uma única guia de recolhimento.

A novidade tem sido o assunto dominante nas rodas de cafezinho ou nas mesas de bares e restaurantes. Cada patrãozinho a relacionar nos dedos as concessões que fazem a suas auxiliares da copa ou da cozinha. Há uma consciência generalizada de que as medidas são justas e chegaram em boa hora. Dúvidas  surgem, e se pergunta:   da empregada que dorme a tarde toda, serão descontadas  essas horas? Pode-se trocar  horas  excedidas, pelas dormidas? Além das dúvidas, existe também o  receio de que com tantos direitos e cálculos a fazer, a cozinha seja transformada em uma pequena empresa e se  precise contratar  alguém para fazer sua contabilidade. Na verdade, as empregadas às antigas, permanecerão, apenas, nas lembranças dos saraus das suas patroínhas.

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