Letras de carvão
Gosto tanto de ver você escrevendo seus contos, meu filho.
Às vezes eu também escrevo.
Sabe, quando eu tinha a sua idade, não sabia ler nem escrever.
Você quer que eu conte a história de como aprendi a ler? Depois podemos escrevê-la
juntos. O que acha dessa idéia?
Então vamos começar…
ntes, aqui no povoado, quase ninguém sabia ler.
E muito menos escrever. O senhor Veloso, o dono da mercearia, era um dos
poucos que sabia. Ele anotava na parede, com giz, o nome de todos os vizinhos e quanto
cada um deles lhe devia. Assim, quando as dívidas eram pagas, ele as apagava.
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As letras estavam presentes em todas as partes, mas quase ninguém reparava nelas.
Os jornais velhos eram usados para embalar as compras e para tapar os furinhos
das paredes. Dessa forma, nas noites frias, o vento não conseguia atravessá-las.
As letras viviam nas cozinhas, nas mesas, diante dos olhos de todo o povoado de
Palenque, mas ninguém era capaz de entender o que elas diziam.
s frutas e as verduras chegavam toda semana ao porto. Com as mercadorias,
vinham também algumas cartas, que o carteiro levava até a prefeitura.
Depois de alguns dias, Gina, minha irmã mais velha, recebia uma carta. Isso
acontecia uma vez a cada mês.
Gina abria o envelope com timidez. Sabia que quem enviava as cartas era Miguel, o
jovem médico que havia trabalhado alguns meses no povoado.
À sombra da grande mangueira, Gina permanecia horas observando aquelas cartas
cheias de letras que não conseguia ler, mas que, tinha certeza, traziam muitas promessas
de amor.
Eu morria de vontade de saber o que diziam aqueles papéis. Imaginava que Miguel
pedia Gina em casamento e lhe oferecia uma casinha para viverem juntos em algum
lugar bem longe, tão longe que nem minha imaginação alcançava. Gina certamente
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sonhava coisas parecidas.
A verdade é que nenhuma de nós podia ler o que Miguel escrevia.
Passávamos as cartas de mão em mão, procurando decifrá-las.
Subíamos no galho mais alto da mangueira, desdobrávamos folha por folha e
procurávamos pela letra “O”, a única que conhecíamos.
quelas cartas se tornaram
uma obsessão para mim.
Queria decifrar o que as letras
diziam para contar a Gina.
E foi assim que decidi aprender
a ler.
— O que está escrito aqui? — eu
perguntava ao senhor Veloso
sempre que podia.
— Eu posso ensinar você a ler
se você me ajudar na mercearia —
ele um dia propôs.
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— Ajudar a fazer o quê? – perguntei.
— A empacotar os grãos. É preciso pesar o arroz, o feijão, o milho. Depois, devem
ser colocados em sacos de papel. Cada saco deve pesar um quilo, nem mais, nem
menos.
ma vez por semana, lá ia eu
ajudar o senhor Veloso.
Com muito cuidado, pesava,
embalava e colocava os grãos já
ensacados na estante. Enquanto
isso, estudava as letras que ele me
ensinava.
— Veja, aqui está o nome de
sua mãe: JOSEFINA. Me mostre,
onde está a letra “A”? Sim, essa foi
muito fácil. E a letra “J”? Ah, sim,
sim, muito bem.
De nome em nome, de vizinho em vizinho, de dúvida em dúvida, terminei por
aprender todas as letras.
o cair do sol eu brincava
que era o senhor Veloso.
Gina se sentava ao meu lado e,
algumas vezes, meus irmãos e os
vizinhos se juntavam a nós.
Com um pedaço de carvão da
cozinha, eu escrevia as palavras no
chão e pedia que descobrissem as
letras.
— Quero ver, onde está a letra
“G” de GINA? Onde está a letra “C”
de CÃO?
U
A
E Gina, com vontade de aprender para poder ler as cartas de Miguel, se esforçava
para encontrar todas as letras.
No final do ano, Gina e eu já sabíamos ler. Líamos devagar, mas entendíamos tudo.
Mas, enquanto aprendíamos as letras, as cartas começaram a ficar cada vez mais e
mais raras.
róximo ao Natal, chegou uma carta de Miguel.
Gina e eu subimos na mangueira, abrimos o envelope e começamos a ler.
Querida Gina
Eu já lhe escrevi muitas e muitas cartas, mas não recebi resposta.
Esta será a última. Estou de prtida para outro país e será muito difícil voltar para
Palenque.
Guardarei uma bela recordação da sua amizade.
Desejo tudo de bom a você.
Com minha mais sincera gratidão.
Miguel Terra
uando Gina terminou de ler,
tinha os olhos cheios de
lágrimas. Mas ela logo guardou a carta
no bolso e disse:
— Ainda não acabamos de costurar
nossos vestidos para a festa de Natal!
Temos muito que fazer. Vamos, outro
dia voltamos a ler a carta.
P
Q
urante a festa, Gina conheceu João José… mas essa é uma outra historia.
E eu, toda orgulhosa, recebi o mais lindo presente que alguém me havia dado:
meu primeiro livro de contos. O senhor Veloso havia encomendado para mim.
Nesse Natal, eu me senti a menina mais feliz do mundo. Assim que a festa terminou,
li o livro em voz alta para todas as pessoas do meu povoado.
Desde então, meu filho, eu nunca mais deixei de ler para mim mesma… e também para
todo mundo.
O QUE SE TRANSFORMA, O QUE PERMANECE
No meu país, a Colômbia, assim como em boa parte dos países da América Latina, entre
os quais o Brasil, a cultura e as regras comunitárias foram sendo transmitidas pela
tradição oral. As palavras narradas e cantadas nas reuniões ou nas cantigas de ninar
pareciam suficientes até pouco tempo atrás. Ler e escrever não eram prioridades,
principalmente nas comunidades afrodescendentes localizadas nas zonas rurais mais
remotas e de difícil acesso. Menos prioritárias ainda quando se pensava nas mulheres,
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das quais se esperava apenas que cuidassem de suas casas e ajudassem nos trabalhos
da roça.
No final do século XX, a consciência de que a alfabetização era um direito básico de
todos começou a despertar e a se difundir. As escolas foram se multiplicando, novas
bibliotecas surgiram e, finalmente, os habitantes dos povoados e cidades mais distantes
das capitais puderam ter acesso a pequenas coleções de livros.
Desde então, nós, como batalhões de formadores de leitores, pudemos chegar aos
povoados longínquos munidos de nossas sacolas carregadas de livros, e nos reunirmos
com mães e bibliotecárias comunitárias que antes contavam histórias e cantavam, e que
agora também podem ler em voz alta. Essas mulheres aprenderam a ler as letras das
palavras com as quais conviviam em seu cotidiano, como os sacos de farinha que
traziam os nomes dos fabricantes e que, depois de reciclados, transformavam-se em
roupas para as crianças.
Durante anos de andanças, de curso em curso, fui recolhendo as histórias de leitura
dessas mulheres. Suas palavras me comoviam e me enchiam de esperança. Eu as ouvia,
anotava em meu caderno tudo o que escutava e lhes pedia emprestadas essas lindas
experiências de vida de quando chegaram ao mundo das letras.
Assim como as pequenas tranças nas cabeças das mulheres africanas lembram os
pequenos caminhos da mata que um dia guiaram os escravos em suas fugas, eu mesma
trancei as histórias que essa nova geração de leitoras me contou. O povoado onde se
passa Letras de carvão chama-se Palenque (que em português é o mesmo que
Quilombo), em homenagem aos primeiros povoados formados pelos escravos que
conseguiram fugir do cativeiro.
Gostaria de agradecer a Carmen Antonia, bibliotecária da Biblioteca Comunitária La
Alegria (Santiago de Tolú, Colômbia), e a todas as mulheres anônimas de meu país, que
se transformaram em leitoras mas ainda guardam e transmitem as palavras dos mais
velhos que se reuniam em volta dos fogões a carvão, agora cada vez mais raros,
mantendo aceso o fogo da tradição.
IRENE VASCO
[para saber mais sobre a autora: www.irenevasco.com]
A LEITURA COMO FORMA DE INCLUSÃO*
Quando falamos de inclusão devemos primeiro pensar: O que entendemos por
diferenças? Por que as vemos como uma ameaça?
A inclusão não deve tratar apenas dos portadores de necessidades físicas. Atualmente,
os governos se preocupam em criar uma série de medidas de inclusão, visíveis por todos
— como rampas de acesso, elevadores especiais, livros em braille — mas, ao mesmo
tempo, excluem e ignoram um monte de gente que simplesmente não lhes interessa
amparar. Na verdade, todos nós também costumamos agir assim: qualquer diferença —
étnica, religiosa, cultural, econômica, ou de gênero, de orientação sexual e muitas outras
— pode provocar exclusão.
Em um de meus recentes trabalhos, um homem admira as diferentes cores e formas dos
pássaros e convida uma menina a observá-los da forma como ele os vê. Na sequência, o
homem passa a censurar e a tentar mudar as diferenças entre as pessoas, com a
intenção de que todas sejam como ele. A menina, então, lhe oferece um livro e ele
começa a ver as pessoas da mesma forma como, antes, admirava as aves.
Creio que a literatura é isso, uma maneira muito eficiente de mostrarmos as diferenças
como riquezas e não como ameaça. Minhas imagens precisam ser um convite à
curiosidade e à surpresa. Prefiro pensar que o meu trabalho forma leitores, mas não
necessariamente de livros, mas sim de suas próprias vidas.
* Trecho de entrevista ao blog La Neif — www.laneif.com.
Irene Vasco
Letras de Carvão
São Paulo (SP), Pulo do Gato, 2016