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CLUBE DE HISTÓRIA EM : Garrafas com memória

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Garrafas com memória 

Mr. McAllistair tem uma arrecadação ao fundo do jardim. Embora o veja entrar e
sair dela com frequência, desconheço o que nela
guarda. Então, um dia, pergunto-lhe de chofre:
— Pode dizer-me o que guarda na sua
arrecadação, Mr. McAllistair?
Responde-me que mo dirá, com a condição de
que não me ria dele.
Quando lá entramos, cheira a cachimbo velho e
a luz é fraca. Contudo, ainda consigo discernir o que está nas prateleiras. São garrafas!
A arrecadação do meu vizinho está cheia de garrafas.
Garrafas vermelhas, cobertas de gelo, altas, redondas, torcidas,
de vidro duplo, ou altas e delgadas.
— Tudo isto são memórias! — anuncia Mr. McAllistair,
olhando em volta. — Cada uma
destas garrafas contém uma das
minhas memórias especiais.
Quando envelhecer e já não puder lembrar-me de alguns
episódios da minha vida, abro uma destas garrafas e revivo
essas lembranças.
E abre a garrafa coberta de gelo e suspira.
— Esta recorda-me os dias em que ficava à janela, de nariz colado ao vidro, a ver
o meu pai ir para o trabalho. Depois, escrevia o meu nome na janela embaciada!
Agarro na garrafa azul, cuja tampa o meu vizinho abre e comenta:
— Esta lembra-me a primeira vez que vi a minha mulher num baile. Tinha um
vestido azul e o cabelo preso em caracóis.
Pegamos na garrafa alta e ele diz:
— Esta foi quando marquei o golo no tempo
extra do jogo que deu aos da minha equipa a vitória!
A redonda lembra-lhe os filhos a caminhar na
orla do mar e as pegadas deles a desaparecerem
debaixo das ondas.
A garrafa torcida traz-lhe à memória o cheiro
das prímulas da
montanha, depois de uma escalada de cinco horas.
A garrafa de vidro duplo está associada às
brincadeiras com os netos, na relva recém-cortada do
jardim da casa, quando as crianças fingiam ser aviões.
Por fim exaustos, deixámo-nos cair em duas
poltronas velhas a contemplar todas as garrafas que nos
rodeiam. Reparo, então, na única que ficou por abrir.
— E o que está dentro daquela garrafa esguia?
O meu vizinho salta da cadeira, agarra
na garrafa e faz saltar a rolha com o polegar.
— O dia de hoje! — anuncia. — Vou
colocar nela as memórias do dia de hoje!
E desatamos ambos a rir.
Beth Shoshan
Memory bottles
New York, Little Bee, 2004
(Tradução e adaptação)