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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DE HISTORIA EM ? Tal como o pintassilgo

Tal como o pintassilgo

Enquanto observa um pintassilgo balançar-se num pedacinho de erva,
Chelsea Steinauer-Scudder escreve à filha que vai nascer
acerca da beleza, do equilíbrio, e das lições da incerteza.
Já lá vão trinta e uma semanas. Medes agora quase quarenta centímetros e pesas cerca
de dois quilos. Mexes-te muito à noite, e dás pontapezinhos bem mais fortes do que eu alguma
vez imaginara. O teu pai e eu adoramos sentir-te mexer.
Esta manhã, sentei-me num banco húmido debaixo do grande ulmeiro no parque de
Pleasant Hill. Estava nublado e o prado em torno da árvore tinha-se enchido de pássaros:
andorinhões, pardais, pintassilgos e melros. O ar cheirava bem: a chuva da véspera, a riacho
e a rosa multiflora, que tinha mesmo acabado de desabrochar. Sentei-me da maneira mais
tranquila que consegui, na esperança de que pudesses ouvir os pássaros cantar, e a imaginar
o dia em que te traria aqui para os veres, cheirares a relva e colocares os teus dedinhos
nas folhas rugosas do ulmeiro.
Passo agora muito tempo a imaginar a tua vida neste mundo. Acabámos de participar
numa aula de parto que mitigou quase todos os meus medos sobre dar à luz, substituindo-os
por uma melhor compreensão do processo e gestão de expetativas. Aprendemos a reconhecer
os sinais do parto precoce e a fazer uma respiração correta. Também ficámos a saber o que se
passaria em casa e no hospital, e o que vai acontecer logo após o teu nascimento. O que mais
me tranquilizou foi saber que o meu corpo e tu saberemos exatamente o que fazer quando
chegar a hora. Sinceramente, é isto que mais me tem surpreendido nos últimos sete meses.
A minha barriga a crescer, os teus movimentos e pontapés, o som do teu coraçãozinho
em cada consulta que fizemos, tudo isto são motivos de maravilhamento para mim, bênçãos
que recebi sem nada fazer para as merecer.
Existe, contudo, um aspeto que me assusta quando penso no hospital. É a perspetiva
de testar positivo para o COVID-19 quando for admitida. Caso tal aconteça, a situação será
bem diferente. Posso não ter um momento de privacidade contigo, pois vão recomendar que
sejas imediatamente isolada de mim. Claro que posso recusar essa recomendação, mas que
consequências teria essa recusa para ti?
Confesso que este medo parece demasiado dramático e que não é, de todo, algo que
possa ajudar-me. Todas as pessoas a quem falei dele disseram-me que não se trata
de um cenário muito realista. Os casos no estado do Maine são muito poucos. Temos sido
muito cuidadosos. Somos saudáveis. Mesmo que acontecesse algo, haveríamos de
ultrapassá-lo. Vamos ter todo o tempo do mundo para te abraçar e amar.
E, contudo, o medo permanece.
Tenho tentado praticar uma maior aceitação de situações imprevistas, de acontecimentos
que não decorrem da forma que achamos que devem decorrer. E tenho recebido lições sobre
isso das mais diversas maneiras, nos últimos meses.
Os rebentos da macieira que toquei com a mão sob a neve do fim de fevereiro nunca
floresceram e nunca mostraram as suas flores rosa e branco. Demasiadas geadas tardias
fizeram com que não haja maçãs aqui este ano. Mas a macieira continua verde, cheia de folhas
e a crescer, o que indicia que um novo ano virá. A Terra é resiliente e sabe regenerar-se.
O ninho de gansos que observei durante quase seis semanas, que visitava todos os dias
para ver a mãe chocar os ovos, também não deu fruto. Quando, um dia, não a vi sentada no
ninho, assumi que os ovos tinham sido todos chocados e que os filhotes estavam
aconchegados algures por entre os juncos do riacho. Mas no dia seguinte vi-a no lago,
acompanhada apenas pelo ganso. Quando observei o ninho com os binóculos, vi que um ovo
tinha rolado até à borda da água: sozinho, desamparado, fechado. Confesso que chorei quando
pensei nas semanas todas que ela tinha passado a chocar os ovos debaixo de chuva, neve e
granizo.
Chorei por ela e pelos ovos, e também pela quantidade de coisas que não têm o desfecho
que esperamos; por todas as vidas que vêm a este mundo carregando um peso muito maior
do que deveriam e que vivem num mundo muito mais perigoso do que tu viverás por causa
desse mesmo peso; pelo nosso falhanço em partilhar e aliviar esse fardo, e tornar o mundo
mais seguro para todos; e pela incerteza, por vezes incomportável, que reclama os tranquilos
ovos do ninho de um pássaro, no meio de um pequeno lago.
Penso que a raiz real do meu medo é imaginar que estas últimas semanas de gravidez
serão as mais seguras que poderei proporcionar-te, no seio do meu útero, onde te encontras
quente e protegida. Resguardada.
Sabes, Filha, o mundo cá fora é tão belo e tão preocupante. O teu pai e eu falamos muito
de como te ensinaremos a observar gansos, plantar sementes, comer maçãs tiradas da árvore
e escutar o canto dos pássaros. De como te ensinaremos a respeitar e a preservar um espaço
seguro para os que são diferentes de ti; de como te ensinaremos a tomar consciência e a lidar
com o privilégio associado à tua pela branca, ao mesmo tempo que continuaremos
a educar-nos acerca do nosso próprio privilégio e responsabilidade. Falamos da necessidade
de te ensinar a escutar as vozes que têm sido constantemente silenciadas ou descartadas,
sejam elas humanas ou não, e da riqueza que a escuta traz consigo.
Há vários cenários que me causam medo: passar o trabalho de parto inteiro com uma
máscara; entrarmos ambas em quarentena durante várias semanas depois de nasceres,
sem visitas dos teus avós ou de outros parentes; viver em contexto de pandemia com uma
criança; sentir o cheiro dos tanques de petróleo de uma companhia próxima, que tem
consistentemente ultrapassado as taxas de emissão permitidas pela Agência de Proteção
Ambiental. É então que tento recordar que o pintassilgo sabia exatamente onde aterrar esta
manhã, de que forma a folha de erva o susteria, a que exata distância do solo ficaria, e como
tudo ficaria em equilíbrio depois de ele levantar voo de novo.
Tento lembrar-me de que o meu corpo sabe exatamente o que fazer para te trazer
ao mundo. O pintassilgo sabe o que fazer. O ganso e a macieira também. E há muitos seres
no mundo que sabem, igualmente, escutar, e que estão a trabalhar para sarar feridas.
As pessoas também sabem fazer isto.
Por isso, minha Filha, espero ansiosamente pela tua chegada. Imagino que aspeto terás,
a que cheirarás, que sons farás, e como será o mundo em teu redor. Estamos a preparar-nos
para te apresentar a este mundo cheio de maravilhas e sofrimento, cheio de bênçãos e defeitos,
onde os cantos dos pássaros são tão bonitos e o inesperado continua, incessantemente,
a partilhar os seus ensinamentos.
Chelsea Steinauer-Scudder