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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DE HISTORIA EM : Conto gigante

 Conto gigante 
Baseado no poema
O gigante de olhos azuis
de Nazim Hikmet
ra uma vez um homem que tinha o coração tão grande, tão imensamente grande,
que seu corpo precisou crescer muito para contê-lo. Assim, ele se transformou em
gigante. Esse gigante se chamava Bruno e vivia à beira-mar. A praia era o pátio de sua casa;
o mar, sua banheira. Cada vez que as ondas o encerravam em seu abraço de água salgada,
Bruno se sentia feliz.
Por um instante, ele já não via praia e céu: seu corpo era um enorme peixe de maio, que
se deixava arrastar até a praia.
A estação do ano de que Bruno mais gostava era o verão. Nela, seu pátio praiano — só
e silencioso durante o resto do ano — voltava a ser visitado pelos turistas e a se encher de
quiosques. Então, Bruno também se sentia menos sozinho.
No primeiro dia de um verão qualquer, Bruno conheceu Leila.
O gigante tinha acabado de sair do mar e caminhava distraído. Suas pegadas enormes
ficavam desenhadas na areia. De vez em quando, Bruno virava a cabeça encaracolada para
olhá-las.
De repente outros pés, uns pés muito pequenos, começaram a pisá-las, uma por uma…
E
Eram os pés de Leila, uma mulher pequenina, pouco maior do que suas próprias
pegadas.
Bruno se deteve, assombrado:
— Não tem medo de mim? — ele perguntou, curvando a cintura.
Leila — longa trança castanha amarrada por um laço — fingiu que não ouvia.
Bruno chegou um pouco mais perto:
— Perguntei se não tem medo — e a respiração do gigante agitou a vegetação das
dunas.
A mulher pequenina riu:
— Não. Por que haveria de ter medo? Você é tão bonito… A beleza não pode fazer mal…
Bruno estremeceu:
— Bonito, eu?
— É. Você é bonito. Acho lindo o metro de azul que você tem em cada olho…
No segundo dia daquele verão, Bruno se apaixonou por Leila.
— Quer se casar comigo? — ele se animou a perguntar, rompendo a timidez pela
primeira vez na vida.
— Quero —respondeu ela. — Quero me casar com você — e se afastou com pequenos
passos.
No terceiro dia do verão, mal o cochilo acordou, Bruno correu para o mesmo lugar do
encontro, procurando a longa trança castanha.
E a encontrou, muito ocupada, juntando mariscos num balde.
— Olá, Leila — ele disse, depois de observá-la por alguns segundos, em silêncio.
— Como vai, Bruno? — ela respondeu.
Desde aquela tarde, e até terminar o verão, o gigante e a mulher pequenina se
encontraram na praia todos os dias.
No último dia das férias, Bruno a pegou pela mão e a levou — de olhos fechados —
para conhecer a casa que ele mesmo tinha construído de frente para o mar.
— Pode abrir os olhos, Leila — disse ele, depois de caminhar um longo trecho pela
praia. — Esta será a nossa casa; vamos morar aqui quando nos casarmos… — e o enorme
coração de Bruno fez sua camisa se agitar, tanto ou mais do que o vento…
A primeira coisa que Leila viu foi o rodapé, que lhe chegava aos joelhos…
Depois viu a porta, da qual nem alcançava a maçaneta…
Finalmente inclinou a cabecinha para trás e contemplou a casa inteira… Uma casa
gigantesca de pedra ocupou sua atenção durante meia hora: o tempo necessário para vê-la
de frente, com seus olhos pequeninos.
Porta de madeira, talhada com estranhos arabescos…
Vidraças com vidros azuis…
Uma cúpula lá no alto, muito longe da praia… muito perto das nuvens…
— Não gosto… — exclamou Leila.
— Mas você ainda não a viu por dentro… — disse o gigante, um pouco triste.
E, tomando-a nos braços, transpôs a entrada e levou Leila para dentro da casa.
Mal pisaram no tapete do vestíbulo, Leila estranhou:
— E essas escadas? Para que tanta escada?
— Mas por essa escada você vai poder alcançar o verão… — explicou Bruno, gaguejando.
— Esta outra leva ao terraço… Dali vamos ver o sol se afogar no mar todas as tardes… Aquela
sobe até a noite de Natal…. Você vai poder pendurar suas meias sempre que desejar… aquela
leva a um jardim ao ar livre… Lá você terá tudo o que quiser, para encher as mãos… Aquela
outra…
— Não!! — exclamou Leila. — Não gosto muito desta casa! Queria uma casinha pequena,
bem pequenina, com cortinas de cretone e vasinhos com malvas…
— Mas lá eu não caberia… — gemeu Bruno. — Não caberia…
— Por vezes, você poderia pôr a cabeça para fora pela chaminé! — afirmou Leila. — E
deixar a barba cair pelo telhado… e esticar os braços pelas janelas… e deslizar uma perna
pela porta e dobrar a outra… e…
Não… Bruno era um gigante. Um gigante faz todas as coisas “gigantemente”… Até seus
sonhos são gigantes… Não cabem em casinhas pequenas…
Não cabem…
— Adeus, Bruno — ela disse então. — Não posso me casar com você.
E foi embora.
Na semana seguinte, Leila se casou com um homem da altura dela, e desde então vive
feliz numa casinha da cidade, com cortina de cretone e vasinhos cheios de malvas.
E Bruno? Pois Bruno continua lá, junto do mar.
Sabe que num outro verão qualquer haverá de encontrar uma mulher que possa entender
que seu coração gigante precisa de muito espaço para bater feliz.
E com ela estreará então todas as escadas da casa de pedra…
E com ela dançará na cúpula, ao ritmo da música marinha…
E com ela tocará, uma noite, a pele gelada das estrelas…
Elsa Bornemann
Um elefante ocupa muito espaço e outros contos
São Paulo (SP), Martins Fontes, 2001
(Adaptação)