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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : A Viagem

A Viagem
A estação era fria. As pessoas caminhavam lentamente, arrastando pesadas malas.
Num repente, comecei a ouvir alaridos de espanto. Uma velha vestida de branco havia
subido à torre do relógio e, sem que ninguém soubesse como, sentou-se no ponteiro das horas. Os
viajantes, aos poucos, foram abandonando a bagagem, concentrando-se por baixo da torre.
Tentavam convencê-la a que descesse e ela recusava, dizendo não ser ainda a hora.
Alguém chamara a polícia, que tardava.
Todos os olhos estavam agora postos no ponteiro das horas, até os meus, e naquela mulher
misteriosa. Envergava uma camisa de dormir branca de bordado inglês, que subira até às coxas.
Uns longos cabelos, completamente brancos, tocavam-lhe nos joelhos. Com as duas mãos,
segurava um saco de ráfia, que parecia cheio e ela olhava para cima, com um olhar doce, como se
visse estrelas e não a estrutura metálica da estação.
Não sei quanto tempo passou. O relógio da estação deixou de marcar o tempo e o meu
relógio de pulso também. Desconfio que nenhum relógio funcionava. Mais que uma vez, vi entre
os que ali estavam, de olhares desorientados, perguntar a uns e outros as horas, sem que ninguém
soubesse responder. Incrédula, deduzi que o tempo obedecia àquela mulher que todos tomavam
por suicida. Fiquei curiosa. O que haveria dentro daquele saco de ráfia? Como se se apercebesse
da minha curiosidade, a mulher olhou-me.
Apontou-me o dedo e pediu-me que chegasse mais perto.
Obedeci. Abriu o saco e retirou lá de dentro uma mão cheia de ponteiros, dizendo que era
chegada a hora. Com uma agilidade inesperada colocou-se de pé em cima do ponteiro, ficando
assim, de costas viradas para o corpo do tempo, pisando o braço das horas. Ao mesmo tempo que
uma nuvem de pombas brancas invadia a estação, esvoaçando por cima da torre do relógio e da
velha, que já nem me parecia tão velha.
Voltou a olhar-me, esticando a mão cheia de ponteiros e disse-me:
— Isto foi teu. Perdeste tantos, como o tanto que pesa a tua mala. Vê!
Lançou-os, como se atirasse comida às pombas, que os recolheram ainda no ar, e,
desapareceram com eles no bico.
Voltou a enfiar a mão dentro do saco, retirando mais um punhado de ponteiros. Desta vez
olhou para a mulher ao meu lado e repetiu a operação. Repetiu-a com todos os viajantes que a
olhavam em silêncio, como se esperassem a sua vez. A cada vez que o fazia, parecia perder idade.
Quando o saco ficou vazio, não era mais que uma criança, de uns 7 ou 8 anos.
Abriu os braços e saltou.
Naquele momento, um anjo caía da torre do relógio. Antes que atingisse o chão, sete pombas
agarraram na agora criança, elevaram-na e desapareceram com ela. Consternados, os viajantes
olhavam-se entre si, tentando perceber, se o que haviam presenciado fora real, ou apenas uma
alucinação partilhada, que ninguém quis explicar à polícia, quando finalmente chegou.
O único crime que encontrou foi tempo perdido.
Ouviu-se a última chamada para o último comboio da noite.
O relógio da torre marcava agora cinco minutos para a meia noite. Após um ou dois minutos
de despedidas, a estação ficou vazia e o comboio cheio. A vida prosseguiu como se nada fosse.
Quando peguei na minha mala, pela primeira vez apercebi-lhe do peso.
Hesitei, mas acabei por a deixar ali mesmo e entrei no comboio.
Afinal, a ternura é leve e não precisa de bagagem.
Nenhum tempo se perde ou envelhece com ela.
Talvez seja isso a única coisa que me faz falta, nesta viagem.

Sónia M.