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CLUBE DA HISTORIA EM : O RAPAZ QUE AMAVA AS PALAVRAS

O RAPAZ QUE AMAVA AS PALAVRAS
Existem, neste mundo, pessoas que já nascem colecionadoras. Algumas colecionam conchas
ou pedras. Outras, colecionam penas ou minúsculas colheres de chá. Simão era um colecionador
de palavras.
Simão adorava palavras. Gostava do som delas, do seu tilintar de campainhas. Do seu
paladar saboroso. Das voltinhas que davam na sua cabeça. E, sobretudo, gostava da forma como
a palavra “Mãe” mexia com o seu coração.
Sempre que Simão ouvia uma palavra de que gostava, anotava-a num pedacinho de papel
e guardava-o no bolso. Quando os bolsos de
Simão ficaram cheios de palavras, começou a
enfiá-las dentro da camisa, das meias, nas mangas
das camisolas e até debaixo do boné.
Enquanto as outras crianças se entretinham
com morcegos, papagaios de papel e todo o tipo
de bolas, Simão continuava, sozinho, a colecionar
palavras deliciosas.
O pai era um homem prático que vendia
sapatos robustos e que não conseguia imaginar o
que o filho faria na vida com uma predileção tão
estranha.
A mãe, uma mulher forte e amorosa, preocupava-se com a felicidade do filho. Podemos
mesmo dizer que toda ela era “um moinho de vento” de preocupação.
Com o passar do tempo, as pessoas começaram a chamar “Amapalavras” a Simão.
Até que um dia, alguém lhe disse:
— Ei, “Amapalavras”! Temos uma palavra nova para a tua coleção. “Excêntrico”!
Contudo, em vez de sorrir, Simão sentiu-se ainda mais sozinho ao ouvir aquela palavra.
Certa noite, teve um sonho. Estava diante de uma ânfora enorme e, cheio de curiosidade,
deu-lhe um pequeno toque. Mal acabara de o fazer, saiu dela um homem de tez escura e
contornos rodopiantes.
— É um “génio”! — exclamou Simão,
encantado com o sabor da nova palavra.
— O que quereze de mim? —
perguntou o génio. — Que te conceda um
desezo?
Aqueles sons estranhos e salgados
deixaram Simão sem palavras. Porém, não
resistiu a perguntar:
— É verdade que sou excêntrico?
— Exzêntrico? Tu és um
“Amapalavras”. Zó precizas de encontrar
um propózito na tua vida, uma mizão.
E, sem mais dizer, o génio
desapareceu.
Simão despertou do sonho e colocou numa mochila uma almofada, um cobertor, maçãs,
mel, sumos e toda a sua coleção de palavras. Sabia finalmente o que tinha de fazer e pôs-se a
caminho, determinado a encontrar seu propósito.
Enquanto caminhava, Simão apercebeu-se
dos caules das tulipas, que pareciam bengalinhas
a ondear ao vento, e do balouçar vaidoso dos
galhos de árvores. Quando, à noite, a luz se apagou
para anunciar a chegada das estrelas e do
crepúsculo, Simão acrescentou esta última palavra
longa e encantadora à sua coleção.
Com o decorrer do tempo, todavia, o passo
do rapaz foi ficando mais lento, pois carregava o
peso de demasiadas palavras. Talvez precisasse de
aliviar a sua carga. Mas isso implicava deitar palavras fora e as palavras não podiam ser
desperdiçadas. Eram demasiado preciosas.
Simão estava cansado de mais para pensar e só conseguia imaginar uma coisa: “sono”, uma
palavra esplêndida! Infelizmente, estava com muito sono para anotá-la.
De repente, viu diante de si uma grande
e adorável árvore. Tirou o casaco cheio de
palavras e pendurou ternamente uma palavra
em cada ramo, como se as colocasse em cima
da cama durante a noite.
Simão trepou e enrolou-se numa curva
da árvore. Sentiu-se tão confortável que logo
adormeceu.
Durante a noite, apareceu por ali um
poeta, que não conseguia dormir por falta de
inspiração. De repente, levantou-se um vento
rodopiante. Quatro palavras de Simão caíram
dos galhos. O poeta pegou nelas, distraído.
Agarrou em “lua”, “pastilha”, “limão” e “alcaçuz”.
“A lua”, escreveu no caderno, “derretia-se como uma pastilha de limão no céu de alcaçuz”.
Em seguida, exclamou:
— Encontrei finalmente aquilo por que tanto ansiava!
Na manhã seguinte, Simão despertou para o que só poderia ser chamado de “rapsódia” de
pássaros e palavras. O poeta lia o seu poema mais recente, “recheado” com as palavras de Simão.
Limpando as “migalhas” de sono dos olhos, Simão desceu da árvore e cumprimentou o
poeta.
— O seu poema contém algumas das minhas palavras favoritas e o senhor usa-as de forma
maravilhosa.
— Obrigado. Pela primeira vez na vida, sintome inspirado. Como se chama? Gostava de lhe
dedicar o meu poema.
Por um momento, Simão hesitou. De repente,
disse com orgulho:
— Chamam-me “Amapalavras”.
E foi então que Simão compreendeu a sua
missão.
A sua missão era partilhar as suas palavras
com os outros!
Daquele dia em diante, os seus passos tornaram-se mais leves e cheios de propósito.
Embora continuasse a colecionar palavras, sempre que as sentia pesadas, logo encontrava uma
maneira de as desembolsar e transmitir.
Assim, um padeiro cujos bolos tinham sido sempre ignorados, deu por si com a loja cheia
de clientes famintos. Sem que o padeiro se apercebesse, Simão atirou algumas das suas palavras
favoritas para o ar. “Crocante” pousou ao lado dos bolinhos. “Esplêndida” caiu num pedaço de
pão de centeio. “Delicioso” encostou-se a um bolo de camadas.
— Que sorte a minha! — exclamou o padeiro quando se virou e viu os seus novos e
“vorazes” clientes.
E as pessoas que viviam na vizinhança perceberam que estavam a discutir e a falar de mais
quando as palavras “barulho”,
“burburinho” e “tagarelice” choveram
sobre elas, o que logo as silenciou.
Simão viu-as ficarem paradas e
olharem gentilmente umas para as outras
depois de as borrifar com “silêncio”,
“harmonia” e “amizade”.
E assim, de boca em boca, a lenda
foi crescendo…
Sempre que alguém se lembrava da
palavra certa, exclamava:
— O “Amapalavras” deve andar
por aqui.
Os anos foram passando. Simão tornou-se um homem e também um mito. Contudo, apesar
de gostar do seu trabalho, deu-se conta de que estava sozinho.
— “Solo” — suspirou.
Um dia, depois de lançar as palavras “ágil”,
“vigoroso” e “entusiasmado” na direção de um homem
envelhecido e infeliz, Simão ouviu um som na brisa.
Uma nota única, pulsante e maravilhosa flutuou no ar
e encontrou o caminho direto para o coração dele.
— “Melodiosa”! — exclamou.
Enquanto buscava aquela nota perfeita, Simão
encontrou uma jovem sentada junto de um lago a tocar
alaúde. De repente, o seu coração começou a
“esvoaçar”. Tremulamente, perguntou:
— Como se chama?
— Chamam-me “Melodia” — cantou a jovem.
O encanto da sua voz e palavras revelaram ser, para Simão, a mais doce de todas as
músicas. Foi “amor à primeira escuta”.
Viajaram juntos até casa dos pais dele. A mãe preparou-lhes os seus pratos favoritos e o
pai fez-lhes dois pares de sapatos bem resistentes.
Simão retomou o propósito da sua vida, continuando a colecionar e a espalhar palavras ao
vento. Desde então, milhares de pessoas as têm descoberto e se têm deliciado com elas.
Quem sabe se, um dia, quando estivermos a pensar, a escrever, ou simplesmente a falar, a
palavra certa não virá ter connosco!
Perceberemos, então, que “Amapalavras” está por perto. E, se sentirmos vontade de cantar
ou de tocar música, saberemos que “Melodia” está bem junto dele.
E todos compreenderemos o quão afortunados somos…
Roni Schotter
The boy who loved words
Schwartz & Wade, 2006
(Tradução e adaptação)