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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTÓRIA EM : As Quatro Portas do Céu

CLUBE DA HISTÓRIA EM : As Quatro Portas do Céu
O céu tem quatro portas.
A porta branca onde mora um velho chamado Inverno, a porta verde onde mora uma
menina chamada Primavera, a porta amarela onde mora um rapaz chamado Verão e a porta
dourada onde mora um homem chamado Outono.
O Inverno sai da sua porta branca com um saco cheio de maravilhas e verifica que a
tinta da porta está um bocadinho esmurrada. Volta atrás a buscar uma trincha e conserta
aquela pequena mancha. Depois segue, um bocado rabugento, e como não quer que o
vejam, tira do saco uma embalagem de nevoeiro e espalha-o pelo caminho. Fica tudo
cinzento e, embora esta não seja a sua cor preferida, sempre a acha melhor que os castanhos
de mil e uma tonalidades que o Outono deixou atrás de si.
O Inverno, como já perceberam, não gosta de dar nas vistas, por isso sai no dia mais
curto do ano, 21 de Dezembro, convencido de que ninguém dá por ele. E de facto, às vezes
estamos tão entretidos a preparar o Natal que nem o sentimos.
Por onde passa, vai deixando a Natureza arrepiada. As árvores largaram as últimas
folhas (algumas!, porque outras, chamadas de folha perene, nunca se despem da sua
roupagem). Os bichinhos escondem-se nos seus abrigos onde guardaram comida para os
meses frios. As formigas, por exemplo, são muito previdentes e fazem sempre isso. Há
animais, como os ursos, que dormem durante a época em que não há comida. Metem-se nas
suas cavernas e ali estão quentinhos a hibernar, a poupar energias, para não darem de caras
com nevões e outras coisas de que não gostam. Há ainda os pássaros que, não podendo
sobreviver ao frio, preferem ir passar esses meses para lugares mais quentes do planeta,
para depois voltarem a casa, como nós fazemos no fim das férias.
É por isso que o Inverno é um bocado resmungão. Não encontra quase ninguém pelo
caminho a não ser árvores despidas e bichinhos assustados. Às vezes encontra pessoas, mas
não dá para conversar, porque elas vão à pressa para casa, embrulhadas nos seus agasalhos,
a soprar bafo quente para as pontas dos dedos.
Irritado com esta falta de atenção, o Inverno tira do saco uma chuva torrencial, de que
todos fogem, mas que é uma das suas maravilhas porque vai alimentar os rios e preparar a
terra para mais tarde desabrochar.
Entretanto os homens já cortaram a madeira (só a indispensável) e já a puseram a
bom recato, semearam e protegeram produtos da horta que fazem falta na nossa
alimentação, como agriões, alfaces, espinafres, ervilhas, tomate e temperos como a salsa e
os coentros. E semearam o centeio, para fazer mais tarde aquele pão escuro e saboroso, do
qual, comido quentinho, até o Inverno gosta…
Mas o Inverno não está agora a pensar nisso. Quando está aborrecido e lhe apetece
ver um espectáculo, autoriza as nuvens a fazerem uma brincadeira aparentemente parva,
que é atirarem-se umas de encontro às outras para provocarem descargas eléctricas; põe os
trovões a ribombar e os relâmpagos a iluminar a noite e delicia-se com aquele fogo-deartifício.

As nuvens gostam muito do Inverno; ele dá-lhes imensa importância, deixando,
inclusivamente, que elas substituam o azul do céu. Ficam vaidosíssimas e, além de largarem
água cá para baixo, entretêm-se a fazer noites escuríssimas, de meter medo. Só a lua lhes dá
resposta quando, principalmente em Janeiro, espalha pelo céu um luar de que o Inverno
muito se orgulha por ser, dizem, o mais bonito de todos.
O Inverno guarda para o fim a sua maravilha preferida. Depois de ter largado todo o
frio, de ter feito gelar a água das fontes e dos lagos, de ter espalhado ventos fortíssimos em
todas as direcções, de ter coberto tudo de geada, de ter feito chover granizo que lembra as
pedrinhas brancas de milhões de colares rebentados, de ter levantado as ondas quase até ao
céu, o Inverno diz ao mar e ao vento e às nuvens que se aquietem e tira do saco o seu mais
lindo brinquedo, que é branco e frio e fofo e que se chama neve. Cobre tudo com ela e aí
passa-lhe o mau humor porque vê as crianças saírem para brincar e ouve-lhes as
gargalhadas e observa o que as pessoas inventam, como carrinhos, esquis e trenós, e regalase,
quando anoitece, com o silêncio que envolve aquela zona da Terra. É como se tivesse
oferecido ao mundo um manto branco e o mundo se aconchegasse debaixo dele.
Então o Inverno adormece. Fica tão sossegado que nem nota que a Primavera abriu
devagarinho a porta verde e se vem aproximando no seu passinho de dança.
O Inverno tem, sempre teve, um grande fraquinho pela Primavera. Nunca lhe disse
nada porque ela é muito nova e ele um velhote, não quer aborrecê-la com conversas parvas.
Quando acorda e sente no ar o cheiro cor-de-rosa do vento, sabe que chegou o momento de
voltar à porta branca e preparar-se para fazer outras invernias noutras paragens da Terra.
Então, para deixar um presente à Primavera, inventa uma flor linda que parece uma
estrela, quase prateada de tão branca, e vai pousá-la, como um segredo que a Primavera terá
que descobrir, lá no pico mais alto dos Alpes. Fica admirado com a sua invenção, mas não
tem que espantar-se porque o amor é o maior inventor de todo o universo e faz coisas lindas
como essa flor-estrela chamada Edelweiss.
A Primavera chega descuidada, diz de longe um adeusinho ao Inverno que já vai a
caminho de casa e põe-se a brincar com as borboletas. Mas ao chegar, ali pelo dia 20 de
Março, toma bem conta se os sapos, as cobras e os morcegos estão de boa saúde, pois
precisa deles para se alimentarem de insectos e ratos que de outro modo estragariam as
culturas.
A Primavera às vezes parece tonta porque espalha ventos carregados de pólens que
nos fazem espirrar e esfregar os olhos, mas ainda bem que ela tem essa preocupação porque
é assim que se reproduzem as flores que ela traz nos cabelos. Ela é amiga do sol mas
também das chuvas miudinhas, pode dizer-se que a Primavera é amiga de todos e gosta de
andar pelos campos a ver nascer cordeirinhos, cabritos, vitelos e potros, isto em Portugal,
porque se fôssemos a falar de outros países, não tinham conta os animais que ela faz nascer,
desde leõezinhos a elefantes, de renas a ursinhos panda, passando por milhões de outros
bebés.
Se a Primavera colhe muitas flores, também semeia algumas, como cravos, amoresperfeitos,
dálias e crisântemos, para que possamos ter flores todo o ano sem ter que as
mandar vir de outros países. A Primavera gosta de acolher os pássaros que chegam de férias
(chamam-se aves migratórias) e que não são só as andorinhas (que conhecemos bem por
fazerem os ninhos nos beirais das nossas casas) mas também as rolas, os gansos, as
cagarras, os patos bravos.
O que se nota logo é que a Primavera gosta de tudo quanto é novo, de tudo o que
principia, de tudo o que é cheio de vida, é como se o mundo fosse feito e refeito por ela
todos os anos. A Primavera quer ver a Terra a desabrochar, por isso não se cansa de andar
de um lado para o outro. Às vezes desenha no céu um arco-íris com a ponta dos dedos,
outras faz nascer plantas com o hálito da sua boca perfumada, outras ainda veste as árvores
de folhinhas tenras só de passar-lhes de leve a mão pelas ramadas.
Em 1478 houve em Itália um pintor chamado Botticelli que pintou um quadro que
representa a Primavera, não com um só rosto mas com vários, incluindo os do vento, do
amor, da flora, e da deusa da beleza (que se chama Vénus ou Afrodite). Estão num pomar
cheio de frutos e de flores e de movimento, como se uma brisa ali passasse e fizesse nascer
aquela formosura toda.
Lá para o meio do mês de Junho a Primavera, com a boca cheia de morangos, começa
a preparar-se para descansar. A Natureza já recebeu os seus presentes e agora antecipa a
chegada do Verão. A Primavera, a caminho de casa, gosta de encontrar-se com ele, que é
um rapaz muito bonito, bronzeado e forte. Ficam um momento a conversar, ali por volta do
dia 21 de Junho, que é o dia mais longo do ano e por isso dá tempo para esses vagares.
O Verão vem com toda a calma (calma também quer dizer calor, por isso é duas vezes
verdade). O amarelo é a sua cor preferida e a que melhor fica à sua pele morena. Tirou-a do
sol, das praias, dos campos que vão ficando amarelecidos à medida que ele avança. O Verão
é louco por umas boas ondas, um surf, um vólei de praia mas também por um trigal
ondulante, um cantar alentejano ou um barco pelo rio acima. O Verão gosta de ver guardasóis
às cores pelas esplanadas e muitas crianças em férias. O Verão tem sede: gosta de
frutos sumarentos como as ameixas, as rainhas-cláudias, as melancias, e acha engraçado
apanhar melões, que também são amarelos. Assiste sempre à tosquia dos rebanhos, que é
como quem despe os casacos aos carneiros para não terem calor. Outra alegria do Verão é
andar pelos milheirais, correr pelos campos ou sentar-se a observar como os passarinhos
mais novos aprenderam a voar tão bem e ouvir os seus chilreios pelas tardinhas. O Verão
não perde uma ceifa: gosta de ouvir as mulheres a cantar e, quando anoitece, fica deitado no
restolho a olhar as estrelas que parecem falar pela voz das cigarras.
No dia 22 de Setembro, já com as uvas maduras na videira, o Verão vai andando
tranquilo para a sua porta amarela, não sem antes cumprimentar o Outono, que sai nesse dia
e é um senhor cheio de sensibilidade (dizem que é pintor), e o Verão sente por ele muita
amizade e respeito.
O Outono preocupa-se primeiro com as vindimas, mas antes dá ainda umas
pinceladas douradas nas uvas brancas, púrpura nas pretas, para que o vinho que delas nasça
seja delicioso como um néctar.
Depois começa a ocupar-se do arvoredo onde exerce os seus dotes de artista.
Baixa a temperatura, aos poucos, para que os meninos que já estão em aulas se não
constipem. E depois o Outono, que além de pintor é um grande maestro, cria uma sinfonia
de verdes escuros, castanhos, roxos, vermelhos e dourados na folhagem das árvores.
O Outono manda reduzir as regas e abrir covas para as árvores novas, ceifar o arroz,
apanhar a azeitona e colher a amêndoa, indispensável nos doces portugueses. Não se
esquece de plantar os morangueiros para que a Primavera possa deliciar-se com a sua fruta
preferida. Mas também as cerejeiras, as pereiras e as macieiras. O Outono preocupa-se com
o futuro e não quer a beleza do mundo só para si. E porque também gosta do conforto,
manda acender as lareiras, diz às árvores para atapetarem os caminhos com as suas folhas
caídas e lembra às aves migratórias que podem partir. Então elas despedem-se com muitos
pios arrepiados e, a caminho do Sul, fazem longas filas que enfeitam o horizonte como uma
fita bordada.
O Outono gosta de conviver. Por isso ele vem na época das longas conversas e
também dos longos silêncios, de qualquer modo um tempo em que as pessoas comunicam
não só pelas palavras mas também pelo coração.
Então, pelo S. Martinho, o Outono convida os colegas para passarem o dia com ele. O
Inverno raramente aceita o convite porque tem frio e não lhe apetece sair de casa. Mas a
Primavera e o Verão nunca faltam. É tempo de festa, de comer castanhas e provar o vinho
novo e então, só porque eles saíram da porta verde e da porta amarela, o dia acorda
primaveril, com uma suave brisa matinal e ao meio-dia está quente como se fosse Agosto.
(O ano desta história foi excepcional e o Inverno apareceu com o saco de estrelas e
lançou alguns cristais de neve por cima dos telhados. Ficou lindo e de manhã o Verão
derreteu-os antes de ir para casa).
O Outono, que tem predilecção por bibliotecas, casacos de malha e crepúsculos
suaves, sugere sempre às pessoas que juntem estas três coisas e leiam bons livros, dos quais
se lembrarão toda a vida, sobretudo enquanto houver bibliotecas, camisolas de malha e
finais de tarde entre o dourado e o lilás.
O Outono gosta de criar uma ambiência especial, luminosa e serena, que faz as
pessoas sentirem uma certa quietude na alma.
Talvez seja por isso que os poetas gostam do Outono.
Esta é a história das quatro portas do céu e quem a contou à Maria e ao António foi o
próprio Outono, poucas semanas depois de terem começado as aulas, quando a professora
pediu uma composição sobre as quatros estações e eles estavam sem saber o que escrever.
Perceberam tudo muito bem. Nunca mais disseram que o Inverno é uma chatice e o
Verão é que é bom, porque entenderam que uma menina, fresca e alegre, que gosta de
correr entre as árvores e ver nascer as flores e os cordeirinhos, pode ser amiga de um senhor
velhote de nariz vermelhusco e ambos de um rapaz que gosta de surf e campos de restolho,
e todos de um homem culto, que gosta de livros e de castanhas assadas, capaz de os juntar
para beberem o vinho novo no dia de S. Martinho.
O Outono também lhes disse que a vida das pessoas tem quatro estações como o
tempo. Primeiro somos novos e estamos, como a Primavera, a começar tudo e a aprender a
sonhar; depois somos adultos cheios de força e energia como o Verão; mais tarde ficamos
sensatos e sábios como o Outono; e por fim tornamo-nos, como o Inverno, um bocado
rabugentos, mas ainda capazes de inventar uma flor.
Todas as idades, como todas as estações, têm o seu encanto, o que é preciso é coração
para senti-las e amá-las tal e qual como elas são.
Como a porta dourada estava entreaberta, o António e a Maria ainda puderam ouvir
uma música linda que vinha lá de dentro.
— Que música é esta?
— Foi escrita por um padre que tinha o teu nome, António. Chamava-se António
Vivaldi e publicou-a em 1725, há quase três séculos, vejam lá! Chama-se “As Quatro
Estações”. Se ouvirem com atenção, hão-de reparar que a música diz tudo o que diz esta
história porque nem só as palavras servem para comunicar.
— Podemos pôr isso na composição?
— Numa composição pode pôr-se tudo, é para isso que as composições servem.
Mistura-se o que se sabe com o que se sente, junta-se o que se inventa e aí até podem
acontecer coisas mágicas como abrir portas no céu e conversar com quem imaginamos que
lá mora.
Até hoje o António e a Maria não sabem se sonharam com estas coisas bonitas e um
bocado malucas ou se elas surgiram à medida que se puseram a reparar melhor na Natureza,
a ler mais livros, a ouvir com mais atenção o que os mais velhos vão contando.
A verdade é que tiveram a melhor nota da turma na composição sobre as estações do
ano.
Rosa Lobato de Faria
As Quatro Portas do Céu
Porto, Edições Asa, 2001