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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : A viagem de Hamzat O diário de um refugiado

Como a sua vida e a da sua família se alteraram para sempre a 20 de abril de 2001, quando ele pisou uma mina ao ir para a escola com dois amigos. É a história da sua viagem desde Grozni, na Chechénia, até Magas, na Inguchétia, até Vladicaucasus na Ossétia do Norte e finalmente até Baku no Azerbaijão, onde aguardou que um avião o levasse até Inglaterra…para uma nova vida.

 
 
***
 

O meu nome é Hamzat. Nasci em Grozni, Chechénia, em 1993. Foi durante a guerra com a Rússia. A minha mãe diz que eu nasci com um estrondo. Tenho um irmão mais velho, Zaurbek, que tem 17 anos, e uma irmã mais nova, Kheda, que tem sete. A minha mãe chama-se Tamara e o meu pai chama-se Zelim. Esta é a minha história.

 
 
Os primeiros dias – Grozni, 1993-2000

A Guerra entre os combatentes Chechenos e os Russos vinha já a acontecer desde 1991. O meu pai contou-me muitas coisas e explicou-me a razão do combate contra os Russos. Mas, na verdade, ainda hoje eu não compreendo muito bem… Daqueles tempos, tudo o que consigo recordar é a guerra. Estávamos sempre com fome, com medo e com frio no inverno. Com muito, muito frio. Mas íamos na mesma à escola, e eu gostava disso e também de estar com os meus amigos. A nossa escola tinha sido bombardeada, mas tínhamos aulas debaixo da estrutura dos edifícios da escola que restavam…

Era assim a minha vida. Acabámos por nos habituar… A minha mãe e o meu pai diziam que era difícil. Após os bombardeamentos russos de 1994-95, não havia eletricidade nem gás. Até os esgotos estavam entupidos. Lembro-me de quando tinha cinco anos e desci a uma nascente para arranjar água logo de manhã cedo, tendo regressado com um barril de dois litros. Era pesado. Nesses dias estávamos escondidos numa cave que era fria, escura e assustadora à noite, com os bombardeamentos. Mas as manhãs eram boas porque eles bombardeavam sobretudo durante a noite.

 
A vida continua – Grozni 1993-2000

Portanto, tirando toda aquela confusão à nossa volta, nós éramos apenas mais uma família entre tantas. E fazíamos coisas normais: eu ia à escola, comíamos e conversávamos como qualquer outra família… Mas os problemas encontravam-se por todo o lado: o barulho das explosões, os edifícios destruídos. Não os podíamos ignorar, mas tínhamos de continuar.

Ainda me lembro que a minha irmãzinha costumava choramingar ‘Onde é que a mamã foi?’ quando a nossa mãe estava lá fora a tentar cozinhar numa fogueira ou a arranjar água. O meu pai era engenheiro antes de toda aquela confusão, mas depois deixou de haver trabalho. Por vezes, fazia alguns trabalhos na reparação de edifícios, mas era tudo.

Depois da ocupação de Grozni pelos Russos, no inverno de 2000, tudo piorou, embora os combates tivessem terminado. Os soldados apareciam todos os dias para revistar as casas à procura de combatentes e de armas. Às vezes, entravam a meio da noite. Podíamos estar pura e simplesmente a dormir e de repente, ‘pum, pum’ na porta. Nessas alturas, todos sentíamos medo. Frio, fome e medo.

 
Aquele passo – sexta-feira, 20 de abril de 2001

Foi então que aconteceu. Num dia normal, ao ir para a escola, como sempre fazia, com os meus amigos. Calquei uma mina.

Não me lembro da explosão. Estive inconsciente algum tempo…e por momentos acordado. Mas não me consigo lembrar de muita coisa. Mais tarde, fiquei a saber que foi alguém que ia a passar que me levou de carro ao hospital. Acho que deixei aquele carro realmente bem sujo. Lamento. A pessoa foi muito bondosa. Mas lembro-me de uma coisa: estava sempre a perguntar-‑me o nome. E pôs um cinto em torno da minha perna despedaçada, por causa do sangue, suponho eu.

Não tenho ideia de quando percebi que tinha perdido o pé direito. As pessoas não queriam dizer-me, penso eu, mas eu sabia. Também me lembro que ainda conseguia sentir o pé, embora este já lá não estivesse. Alguém deve ter dito aos meus pais, porque a minha mãe chegou depressa. O meu pai não pôde, porque as estradas estavam bloqueadas pelos Russos. Fui operado nesse mesmo dia.

 
O hospital e a operação – 20-21 de abril de 2001

Não tenho grandes memórias da operação. Deram-me uma injeção, depois ouvi-os a calçar luvas de borracha… e depois apaguei-me. Fiquei completamente entorpecido.A minha perna e o meu pé foram amputados logo abaixo do joelho porque os ossos estavam muito despedaçados. O médico que me operou chamava-se Salman Yandarov, um famoso cirurgião checheno.

Tivemos que pagar a operação: felizmente que a minha avó tinha possibilidades. Tive sorte, acho eu. Fartei-me de perguntar pelos outros miúdos que estavam comigo, porque não os via no hospital. Só soube mais tarde, depois de ir para casa, que tinham sido mortos naquele mesmo dia.

Tive que levar uma transfusão de sangue no segundo dia porque estava muito fraco. O meu pai doou a maior parte do sangue. O pé que eu já não tinha dava-me, na realidade, comichão.

 
Recuperação – 21 de abril – 6 de maio de 2001

Os Russos bombardearam o hospital enquanto eu lá estava. Era o 1º de maio, uma data especial na história da Rússia, por isso os soldados russos estavam a celebrar.

A minha mãe visitava-me todos os dias no hospital. No princípio eu não tinha fome mas, ao fim de uns dois dias, deram-me uma espécie de injeção e então fiquei realmente com fome. A minha mãe estava sempre a trazer-me comida. Nessa altura, ganhei algum peso. Já não era tão magricelas.

Depois fiquei com uma infeção nas feridas. Tiveram que abrir um bocadinho da costura e limpar a ferida. Ainda tenho uma cicatriz esquisita e redonda no sítio onde isso aconteceu. Mas depois fiquei bem, embora tudo me parecesse demasiado lento. O hospital era um aborrecimento. Era sempre a mesma coisa. A minha mãe e o meu pai iam lá, o que era maravilhoso, mas não era como estar em casa. O que eu queria era ir para casa. Eu queria ir para casa!

Ao fim de uma semana comecei a usar muletas porque a perna já não me doía muito. Habituei-me a elas bastante rapidamente, e após 20 dias, deixei o hospital para viver uma maravilhosa e verdejante primavera. Era bom estar de novo com a minha família e amigos!

 
Finalmente em casa – verão – outono de 2001

Uma vez, toda a minha turma veio visitar-me, juntamente com o diretor. Sentei-me num peitoril da janela e limitámo-nos a conversar. Foi ótimo ver de novo toda a gente. Toda a gente menos os dois rapazes com quem eu estava no dia em que aquilo tinha acontecido. Foi difícil. Só me apetecia vê-los.

Não saí de casa durante um mês. Depois, começaram as férias de verão. Foi mesmo bom. Deu-me tempo para me fortalecer e exercitar-me com as muletas. Fiquei realmente um ás! Mas eu queria uma perna artificial. Sabia que ia ser melhor. Então, no outono de 2001, os meus pais conseguiram uma perna artificial para mim. Estava tão entusiasmado! Fui com a minha mãe de autocarro até Magas, a capital da Inguchétia, que fica mesmo ao lado da Chechénia. Depois, a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) levou-nos até Vladicaucasus na Ossétia do Norte, para que me fosse colocada a prótese.