Em 12 de dezembro de 2008, a multinacional Siemens aceitou pagar US$ 1,6 bilhão em multas aos governos americano e alemão, para se livrar da acusação de que promovera o mais vasto esquema de corrupção já descoberto no mundo. Numa investigação coordenada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a que ÉPOCA teve acesso parcial, os promotores americanos haviam comprovado que a Siemens abastecera sistematicamente contas de empresas fictícias em paraísos fiscais para subornar funcionários públicos e políticos em dezenas de países. Entre 2001 e 2007, período em que os investigadores americanos se detiveram, a Siemens gastou a extraordinária quantia de US$ 1,4 bilhão em propinas. Foram identificados 4.283 pagamentos de suborno espalhados pelo mundo, em troca de contratos na Venezuela e na Argentina, em Bangladesh e na China, em Israel e na Nigéria – onde quer que houvesse um bom negócio com o governo. “A Siemens criou esquemas elaborados para esconder a natureza dos pagamentos corruptos (…) e obter negócios ao redor do globo”, dizem os investigadores americanos. “Notas fiscais falsas foram criadas para permitir pagamentos mediante falsos contratos de consultoria, que identificavam serviços que nunca seriam prestados.”
Seguiram-se punições envolvendo a maioria dos crimes cometidos nesses países, muitas vezes com a colaboração da própria Siemens. Ao mesmo tempo, mas em jurisdições diferentes, a multinacional francesa Alstom também foi confrontada com sua versão “petite” do esquema de pagamento de propina. Como ambas têm operações em comum, logo se descobriu que as duas, ao lado de outras grandes empresas, formavam cartéis para faturar contratos públicos. Demorou, mas essas diferentes investigações convergiram aos poucos para o Brasil, país em que as duas multinacionais formaram um cartel para fraudar licitações de trens e metrôs – nos governos do PSDB em São Paulo, nas gestões Mário Covas, José Serra e Geraldo Alckmin, e em Brasília, nas gestões de Joaquim Roriz (então no PMDB, quando governador) e José Roberto Arruda (então no DEM). No caso do PSDB, a Polícia Federal e a Procuradoria da República em São Paulo passaram a investigar o esquema – mas lenta, vagarosamente. A própria Siemens fez uma delação premiada recentemente no Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, em que admite o cartel e oferece provas do esquema.
Nos últimos meses, em vez de obter respostas que esclarecessem a extensão do esquema, a opinião pública foi bombardeada por picuinhas políticas que bordejam o caso. Tucanos insurgiram-se contra as investigações, alegando perseguição política por parte do Ministério da Justiça. Na semana passada, em razão de indícios, ainda que frágeis, de que três secretários do governo Alckmin podem ter sido beneficiados pelo esquema, a investigação do caso foienviada de São Paulo ao Supremo Tribunal Federal, onde autoridades com foro privilegiado, como eles, são processadas. Isso pode inaugurar uma nova e crítica fase nas investigações. Nas últimas semanas, ÉPOCA tentou penetrar a fumaça da política para descobrir quais são as provas sobre o esquema – e qual a consistência delas. A reportagem entrevistou as autoridades que acompanham as diferentes frentes de investigação, obteve os autos dos diversos processos e levantou documentos comerciais, judiciais e bancários nos países em que foram feitos pagamentos de propina aos brasileiros. Emergem dessa investigação fortes evidências de que, como nos demais países, o esquema das multinacionais no metrô de São Paulo existiu e envolveu o suborno de funcionários públicos. Não há ainda prova de que políticos graduados do PSDB façam parte do esquema. Emerge também a demora das autoridades brasileiras – em comparação com outros países – em investigar, denunciar e processar os envolvidos.
>> Justiça envia inquérito do cartel no Metrô de São Paulo para o STF
>> Inquérito sobre cartel no metrô cita três secretários de Alckmin
COMO O ESQUEMA OPERAVA
Seja lá fora ou no Brasil, o esquema era o mesmo. Primeiro, a Siemens ou a Alstom abasteciam contas secretas em paraísos fiscais, sempre em nome de laranjas, com o dinheiro destinado a pagar propina. Na sede da Siemens, em Munique, esses recursos tinham até codinome: “NA”, ou “nützliche Aufwendungen” (“despesas úteis”). Uma vez que a despesa útil estivesse liberada, os executivos locais descobriam quem era preciso pagar, naquele país, para conseguir contratos com o governo. Na maioria dos países, como no Brasil, era preciso recorrer ao serviço de lobistas, que costumam controlar o acesso aos burocratas e aos políticos. Geralmente, tratava-se de uma compra casada: os lobistas negociavam os acertos tanto com os funcionários públicos quanto, em alguns casos, com os políticos que haviam nomeado esses funcionários. Para que o dinheiro da propina chegasse a quem detinha o poder de assinar os contratos, os lobistas valiam-se do mesmo expediente empregado pelas multinacionais ao lidar com dinheiro sujo. Recebiam os pagamentos da Siemens ou da Alstom em contas mantidas em paraísos fiscais, também tituladas por empresas de fachada. Retinham uma comissão e se encarregavam de repassar a propina a quem de direito.
Para dar alguma aparência de legalidade a essas transações, as multinacionais firmavam com os lobistas contratos de “consultoria”. Tanto faz se for em português, francês ou alemão: “consultoria” pode significar qualquer coisa – e, portanto, pode dissimular qualquer serviço sujo. É uma estratégia tão manjada que a Siemens admitiu ao governo americano ter mantido, em determinado momento, cerca de 2.700 contratos desse tipo espalhados pelo mundo. De modo a dificultar ainda mais o rastreamento, em boa parte dos casos o dinheiro da propina nem sequer saía dos paraísos fiscais. Muitos burocratas e políticos já mantinham suas próprias contas secretas nos mesmos bancos – a “despesa útil” que receberiam da Siemens seria apenas mais uma moeda no cofrinho. O esquema que uniu Siemens e Alstom no Brasil seguiu esse modelo, com pequenas diferenças, como contratos locais de consultoria e alguns pagamentos a diretores de empresas estatais em contas nacionais.
QUEM SÃO OS ENVOLVIDOS
No processo que acaba de subir para Brasília, há fartas provas – testemunhais, bancárias, contratuais – de que essas multinacionais e outras empresas que participaram do cartel do metrô em São Paulo contrataram os lobistas e pagaram propina aos funcionários públicos. O caso da construção da linha 5 do metrô de São Paulo, um contrato de R$ 735 milhões em valores atualizados, é exemplar para entender o esquema. Em 10 de abril de 2000, durante o governo Covas, a Siemens da Alemanha assinou contratos de “consultoria” com duas empresas dos lobistas Arthur e Sérgio Teixeira, ambas sediadas no Uruguai. Pelo contrato, eles ganhariam da Siemens comissão de 8% do valor total. Em 2 de maio, os lobistas pagaram US$ 216.800, usando contas secretas na Suíça, ao diretor de operações do metrô de São Paulo, João Roberto Zaniboni, que também tinha uma conta na Suíça. Em agosto, os diretores do metrô, entre eles Zaniboni, assinaram o contrato com o consórcio liderado por Alstom e Siemens. Nos anos seguintes, enquanto liberava os pagamentos para o consórcio, Zaniboni recebia pagamentos que somaram, no total, US$ 500 mil, na mesma conta na Suíça, desta vez por meio de doleiros brasileiros. Há outros ex-funcionários graduados como Zaniboni em situação semelhante. Parte dos bens de Zaniboni e dos demais lobistas está bloqueada.
A dúvida crucial que resta, portanto, é se os políticos tucanos que nomearam esses funcionários também receberam dinheiro, fosse para o bolso, fosse para campanhas do partido. Até hoje, nos muitos casos de contrato com indício de propina, surgiram evidências fortes contra apenas um tucano: Robson Marinho, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE). Marinho é um dos fundadores do PSDB, coordenou a campanha de Mário Covas ao governo de São Paulo em 1994 e, logo depois, tornou-se chefe da Casa Civil no governo tucano. Uma conta dele, que movimentou US$ 1 milhão, foi bloqueada na Suíça em 2009. De pronto, ele negou que tivesse dinheiro no exterior. Neste ano, entrou com recurso na Justiça suíça para impedir que autoridades brasileiras tenham acesso a suas movimentações bancárias em Genebra. No caso de Marinho, segundo o Ministério Público suíço, a propina foi paga pela Alstom, quando ele já era conselheiro do TCE. Ela se refere, dizem as autoridades brasileiras, a um contrato de fornecimento de estações de energia ao metrô, assinado pela Alstom, em 1998, com a Eletropaulo, companhia de energia de São Paulo. O MP suíço enviou às autoridades brasileiras, entre outras provas, uma carta manuscrita em que estão registradas as iniciais “RM”, como de um “interlocutor” entre a Alstom, um partido político não identificado, o TCE e a Secretaria de Energia. Cita-se uma comissão de 7,5% para o fechamento do negócio. “RM” é apontado como Robson Marinho. Até agora, nada aconteceu com ele. Marinho nega as acusações. Permanece no cargo e não foi indiciado pela PF.
De acordo com o MP suíço e investigadores brasileiros ouvidos por ÉPOCA, o mentor da propina nos contratos da Alstom é o lobista José Amaro Pinto Ramos. Amigo de faculdade do grão-tucano Sérgio Motta, Amaro se apresentava no mundo dos negócios como assessor do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Na França, tornou-se próximo de presidentes e ministros. Intermediava financiamentos de bancos franceses a governos de outros países, desde que esses governos se comprometessem a gastar o dinheiro em contratos com empresas francesas – caso do contrato negociado, segundo o MP suíço, pelo tucano Marinho. Amaro ficava, segundo o MP suíço, com uma comissão de cada operação. De tão influente e rico, Amaro já foi suspeito, numa investigação do FBI de 1993, a que ÉPOCA teve acesso, de pagar propina a Ronald Brown, então secretário de Comércio do governo de Bill Clinton. Amaro ajudara a pagar uma casa para Brown, diz a acusação. Segundo ela, Brown, em troca, atuou para levantar o embargo que os Estados Unidos mantinham no Vietnã, algo que interessava aos negócios de Amaro. O Departamento de Justiça americano acabou arquivando o caso. Procurado por ÉPOCA, Amaro negou, por meio de sua assessoria, ter participado do esquema. Disse também que a Justiça da Suíça o absolveu.
Das muitas empresas que, segundo o MP suíço, eram usadas por Amaro, ÉPOCA conseguiu confirmar a existência de quatro – duas no Uruguai, uma na Inglaterra e outra nas Ilhas Virgens Britânicas, um paraíso fiscal. Documentos comerciais do Uruguai confirmam que a GHT Consulting e a Vanlight Corporation existem – e têm a mesma sede em Montevidéu que as empresas de fachada controladas pelos lobistas Arthur e Sérgio Teixeira. Os papéis comerciais da Inglaterra e das Ilhas Virgens Britânicas, a que ÉPOCA teve acesso, também comprovam que outras duas empresas de Amaro – a Dashlink International e a Klansman Overseas – existiam até recentemente. Foram fechadas em 2009, quando tinham capital declarado de e 340 mil. Numa demonstração do grau de sofisticação de Amaro, as empresas dele informavam às autoridades britânicas que seus dirigentes eram… outras empresas – no caso, empresas do grupo Amicorp, especializado em esconder dinheiro das autoridades.
AS FALHAS NA INVESTIGAÇÃO – E OS NOVOS CAMINHOS
Os investigadores brasileiros pediram a colaboração do governo britânico para rastrear essas e outras empresas. Os dados ainda não chegaram. Podem até não ser enviados – graças à desorganização dos brasileiros. Os ingleses, como fazem a maioria dos países, não aceitam compartilhar informações sigilosas, caso elas se destinem a instruir processos cíveis, como ações de improbidade, comuns no Brasil. Compartilham apenas para colaborar em ações criminais. Entre o grupo que assinava o pedido de colaboração brasileiro, havia promotores da área cível do Ministério Público de São Paulo. Diante disso, os ingleses informaram ao governo brasileiro que não enviariam os documentos se não houvesse uma garantia de que eles serão usados somente em processos criminais.
O que parece um pequeno erro dos investigadores esconde, na verdade, um padrão inaceitável de trapalhadas cometidas pela PF e pelos procuradores e promotores responsáveis pelo caso. Os documentos do MP suíço chegaram ao Brasil em 2011. Informavam que lobistas como Amaro e Arthur Teixeira haviam sido indiciados por corrupção e lavagem de dinheiro, ao pagar propina em nome da Alstom. Os promotores suíços pediam que o MP brasileiro investigasse o caso – em troca, compartilhariam ainda mais provas sobre o esquema. No lance mais incompreensível do processo até agora, o procurador responsável pela investigação, Rodrigo de Grandis, “esqueceu” o pedido por quase três anos, embora tenha sido cobrado oficialmente ao menos sete vezes por seus colegas. Em razão disso, o MP suíço informou no mês passado que o processo contra os lobistas teve de ser arquivado. A omissão do procurador rendeu-lhe uma investigação no Conselho Nacional do MP. Os prejuízos à investigação – e à boa relação com a Suíça, de que o Brasil precisa para desvendar outros esquemas de corrupção – são incalculáveis.
Após tantos anos, De Grandis não ofereceu denúncia e ainda tirou licença para fazer um mestrado. (Procurado por ÉPOCA, ele respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que não comentaria o caso. Na semana passada, sob investigação, De Grandis voltou da licença e reassumiu o inquérito.) A polícia empacou na produção de provas. Os países que produziram provas não foram devidamente acionados – e os Estados Unidos, país que conduziu a maior investigação sobre o esquema da Siemens, não foram sequer lembrados. Os principais lobistas e burocratas envolvidos já são senhores, e isso acelera a prescrição dos crimes. “Se o processo permanecesse em São Paulo, apenas os bagres poderiam ser condenados”, diz uma das autoridades que acompanham o caso. “E talvez até eles escapassem.”
Remeter o processo a Brasília pode elevar a investigação a outro patamar.Se a ministra Rosa Weber, sorteada como relatora do assunto na corte, aceitar que todos os investigados sejam julgados no Supremo, haverá novos delegados e procuradores no caso. A elite da PF e a da Procuradoria-Geral da República serão acionadas. Nesse cenário, o Brasil poderá ter chances de conhecer tanto os responsáveis pelo esquema quanto os que se beneficiaram dele.
A decisão que cabe a Rosa Weber não é fácil. São frágeis os indícios que pesam contra o deputado Arnaldo Jardim, do PPS, e os três secretários do governo Alckmin. Eles se encontram no depoimento do ex-diretor da Siemens Everton Rheinheimer. Ao lado de outro ex-funcionário da empresa, Rheinheimer fechou acordo de delação premiada com a PF. No caso de Arnaldo Jardim e do secretário da Casa Civil de São Paulo, Edson Aparecido, Rheinheimer afirmou em depoimento que soube da participação dos dois no esquema por intermédio do lobista Arthur Teixeira. Ele disse aos investigadores que, segundo o relato de Teixeira a ele, Jardim e Aparecido receberam parte da propina paga pela Siemens para assegurar o famoso contrato da linha 5. No caso dos demais secretários citados, José Aníbal (Energia), Rodrigo Garcia (Desenvolvimento Econômico) e Jurandir Fernandes (Transportes Metropolitanos), o indício é ainda mais tênue. Rheinheimer disse apenas que “presenciou a intimidade” deles com os lobistas. Não há, até agora, mais nada nos autos contra eles. Nem documentos nem outros testemunhos. A ministra Rosa Weber terá de decidir, portanto, se esses indícios são suficientes para que os secretários e o deputado mereçam ser investigados no Supremo.
>> Os mistérios e as denúncias nas obras de metrôs pelo Brasil
Fique o processo em Brasília ou volte a São Paulo, ainda há duas frentes de investigação que podem esclarecer se apenas funcionários públicos receberam propina – ou se políticos também embolsaram a “despesa útil”. A primeira envolve a análise da montanha digital de documentos e computadores apreendidos pela PF em julho, nas empresas que participaram do cartel. São cerca de 30 terabytes de informação, entre e-mails, planilhas e comprovantes bancários. É cinco vezes a quantidade de informação apreendida pela Promotoria de Munique em novembro de 2006, na sede da Siemens, no marco zero do escândalo. A PF e o MPF vasculham esse enorme material apreendido em julho, mas se trata de uma tarefa altamente complexa. É preciso ter softwares adequados, analistas treinados e, ademais, descobrir que termos pesquisar. Até agora, a busca não produziu resultados. Analistas do Cade também investigam esses dados. No caso deles, procuram-se apenas provas da formação de cartel, não dos pagamentos de propina.
A segunda frente que pode esclarecer o caso está em outros terabytes – os apreendidos pela Promotoria de Munique. Os investigadores brasileiros pediram ajuda aos colegas alemães. Ainda não houve resposta. Se ela for positiva, poderá conter as peças que faltam no mosaico do caso. As autoridades francesas, que investigaram a fundo as propinas mundiais da Alstom, também podem mandar provas para cá. Os brasileiros ainda podem pedir informações da investigação feita pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que contém dados bancários do propinoduto mundial da Siemens. Essas provas podem esclarecer a questão que, para além da espuma política, está na mente de todos – se os tucanos deram, ou não, uma bicada no maior esquema de corrupção do mundo.