Autoridades médicas estão intrigadas com o alto número de ocorrências de má-formação congênita em fetos no país; assunto foi debatido pela OMS
A Organização Mundial de Saúde (OMS) e autoridades médicas se dizem intrigadas com o fato de os casos de microcefalia aparentemente serem muito mais numerosos no Brasil do que em outros países afetados pela epidemia de zika.
A questão esteve no centro dos debates do 4º encontro do comitê emergencial da OMS sobre o tema, que terminou na última sexta-feira (2) em Genebra.
De acordo com o diretor do comitê, o médico David Heymann, explicações para o alto número de incidência de más-formações ainda precisam ser desvendadas, e estudos em diversas direções procuram entender causas além das especuladas até o momento.
“Há enormes variações e precisamos responder à pergunta: isso ocorreu simplesmente porque o vírus atingiu a população em um outro momento, e há apenas um lapso de tempo? Estamos apenas aguardando que as complicações apareçam? Ou outros fatores contribuem fazendo com que, em uma parte do mundo, a doença resulte em maiores complicações do que em outra?”, indagou.
De acordo com o último boletim epidemiológico da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), até agosto foram confirmados 1.845 casos de bebês nascidos com más-formações no Brasil, em uma população de 206 milhões.
O segundo país a registrar maior incidência de más-formações congênitas é a Colômbia, com 29 casos confirmados em uma população de 47 milhões. Em uma comparação simplificada, o Brasil tem população cerca de 4,3 vezes maior do que a do vizinho, mas registra 63 vezes mais casos de más-formações.
Ao todo, infecções por zika foram observadas em 72 países desde 2007, porém apenas 20 desses reportaram más-formações no sistema nervoso de bebês associadas ao vírus. Entre eles, quatro foram episódios de infecção ocorridos fora do território.
Possibilidades
Diversas teorias procuram explicar a razão dos altos índices de microcefalia observados particularmente no Brasil, mas até o momento nenhuma é conclusiva.
O argumento mais aceito era de que os surtos haviam iniciado anteriormente no Brasil e se alastrado para o resto da América Latina, portanto seria apenas uma questão de tempo até a microcefalia atingir altos números na região como um todo.
Essa profecia, porém, ainda não se concretizou, deixando o Brasil numa indesejável e solitária liderança estatística.
Para o virologista da USP Paolo Zanotto, a cepa (linhagem) do vírus, o lapso do tempo desde o início da epidemia, a interação com outras doenças e as condições socioeconômicas são os fatores mais prováveis por trás da discrepância.
Na reunião da OMS debateu-se extensamente se a versão do zika que provocou a epidemia no Brasil – de origem asiática e comprovadamente associada à microcefalia – seria mais perigosa do que sua gêmea, a cepa africana.
“As epidemias com a cepa africana vêm ocorrendo há vários anos, mas ninguém realmente as observou. Então a pergunta é: estaria a africana também causando microcefalia?”, questionou Peter Salama, diretor-executivo para surtos e emergências da organização.
“Estamos analisando as diferenças entre as cepas. Isso está sendo investigado”, reforçou Heymann.
Zanotto ressalta que a desproporcionalidade de casos nos Brasil depende da compreensão do fenômeno como um todo. O lapso do tempo desde o início da epidemia e o nível de prevalência do vírus seriam os parâmetros corretos para essa aferição.
“A gente precisaria ter estudos de sorologia retroativos nas populações para entender em que ponto estamos, quantas pessoas de fato foram infectadas. Um milhão? Cinquenta milhões? Precisamos saber isso para poder calcular os casos de microcefalia com um denominador de fato.”
“Imagine se no Nordeste (do Brasil) 80% da população já tiver sido infectada? Aí os números de microcefalia fariam sentido. Mas, se menos de 2 milhões tiverem sido infectados, ainda haveria muitos milhões (de pessoas vulneráveis). Aí a doença ficaria muito mais complicada do que parece”, explicou.
Cofatores
“É necessário que haja estudos completos, com grupos de controle, para estabelecer se existem ou não outros aspectos envolvidos. Isso é principalmente por conta da diferença entre as manifestações (do vírus) em diversos países”, afirmou Heymann.
O diretor-executivo destacou que a particularidade brasileira é “uma questão em aberto”. “Há muitos estudos em andamento, inclusive com grupos de controle, especialmente no Nordeste do Brasil, para explicar as variações entre as incidências de complicações.”
Ele enumerou aspectos genéticos, alimentares e de contaminação ambiental como exemplos. “Há uma extensa gama de fatores que precisa ser avaliada para entendermos exatamente a causa”, agregou.
O desafio dos cientistas não é apenas definir quais cofatores impactaram a má-formação dos bebês, mas também avaliar a interação entre eles, já que possivelmente ocorrem simultaneamente.
“No Nordeste, há uma prevalência de dengue muito mais alta do que no resto do Brasil. Cerca de 80% da população já teve dengue. Pesquisas já mostraram que isso pode ser um intensificador do problema”, disse Zanotto.
Outro ponto destacado por Zanotto é o índice de desenvolvimento humano (IDH), referência utilizada para avaliar a condição socioeconômica da população. De acordo com o professor, a maioria dos bebês afetados nasceu em comunidades cujo IDH é baixo.
“Temos evidência de que o fator socioeconômico está relacionado também – pode ser relacionado à má nutrição ou à exposição a outras doenças.”
“Há várias coisas que podem ser a razão (da alta incidência de microcefalia) e estamos tentando produzir pesquisas em várias linhas pra tentar ficar sensível às respostas que venham dessas diferentes hipóteses”, concluiu.
Fonte: iG Vigilante –