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Um quarto de bode (Irapuan Sobral)

“A alma é eterna; é a vida que é uma só.”
— Livro das Indiferenças

“O perdão divino acostuma o pecador à pena; não o absolve.”
— Dicionário de Exceções

Michel Alcoforado, no livro recém-lançado, Coisa de Rico, abre um retrato cru da elite brasileira. O que define os endinheirados não é só o dinheiro, mas o ritual de separação: escolas que excluem, restaurantes que selecionam, condomínios que blindam. A vida se resume a manter distância. O ócio, quando existe, é apenas espetáculo — resorts, cruzeiros, festas exclusivas. Descansar é mostrar que se pode. Há, claramente, uma concorrência sobre números e estilo, como se fosse uma cultura. Nem que seja apenas pelos dígitos dos números que o governo oferece nas suas dívidas.

Ao tratar da diplomacia como escola de etiquetas e nobreza-raiz, Alcoforado me força a duas pitadas de sarcasmo. Primeiro: diplomacia séria é negócio de Estado, não passarela de dândis ou palco de saraus intelectuais. Diplomacia é o primeiro exército — a força que avisa. Depois, recordo Villafañe, no livro sobre o Barão do Rio Branco, narrando a nomeação de um filho do editor do Correio da Manhã à carreira diplomática. É o mesmo Brasil: o sistema de holerite nunca mudou, apenas trocou os cifrões.

Mas nada retrata melhor a elite nacional do que o rico encabulado. É aquele que sai da missa com moedas trocadas para o pedinte na porta, não por generosidade, mas por vergonha. Ele sabe, lá no fundo, que cada real que entrou no seu bolso foi arrancado — por holerite gordo, por juros abusivos, por roubo legalizado — do mesmo mendigo a quem entrega a esmola. O rico encabulado é a síntese perfeita: exibe o supérfluo, mas paga em constrangimento. Carrega o peso de uma culpa que nem o dízimo lava.

É a mesma lógica da classe média que joga na loteria como terceirizada de Deus nas promessas.

Em Os Sonhos de Einstein, Alan Lightman descreve, num dos contos, uma elite que decide viver no alto das montanhas, longe dos pobres no vale. Lá em cima o ar é rarefeito, a vida difícil, mas a distinção social compensa. É a mesma metáfora do Brasil de Alcoforado: elites que preferem respirar menos vida a perder o privilégio da distância.

“Quando há trabalho, não há trauma.” Essa máxima vale para o pedinte, que não tem emprego, e para o rico encabulado, que tem de encarar o espelho. O trauma não nasce do trabalho, mas da consciência de que a riqueza, em muitos casos, não vem dele.

Do outro lado do mundo, Lin Yutang escreveu The Importance of Living. O chinês não fala de fortunas, mas de sabedoria. Para ele, a verdadeira grandeza está no ócio. Não no comprado, mas no simples: deitar na grama, rir de bobagens, tomar chá com amigos. O homem digno não é o soldado disciplinado nem o executivo de metas. É o “scamp”, o vagabundo espirituoso, que leva a vida com ironia e leveza.

Lendo os dois, lembrei de Nezin Cipriano, lá de Jatobá. Chegava à farmácia com um quarto de bode, erguia no ar e anunciava para minha irmã Marah:

— “Isso é coisa de [nós] ricos.”

Já vinha embrulhando, fixava o preço e arrematava:

— “Não se preocupe com o pagamento. Depois eu apareço.”

Não era ostentação, era generosidade.

Nezin gostava de brincar de viver. Ria de tudo, se divertia até com as próprias farras. Uma noite, ainda crianças, invadimos um caminhão de mangas verdes que ele levava para o Rio. Ele não se zangou. Sabia que não daríamos conta, cada um, de mais de uma.

Alcoforado nos mostra a elite encabulada e oca, cercada de cifrões e etiquetas. Lightman nos lembra da rarefação do ar social quando a distinção é tudo. Yutang mostra que a vida vale no riso leve e no ócio verdadeiro. E Nezin, sem teoria nenhuma, viveu como exemplo: generoso como um rico, livre como um vagabundo feliz.

O Brasil pode até sonhar com riqueza, mas enquanto ela vier de holerites inflados e juros cruéis, continuará a produzir apenas isso: ricos encabulados — incapazes de viver com a leveza de um quarto de bode.

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