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Uma pesquisa liderada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) revelou substâncias tóxicas para o meio ambiente na Lagoa da Conceição, em Florianópolis (SC). Entre eles, a cocaína, com números de contaminação entre os maiores do mundo.
Com 19,71 km², a Lagoa da Conceição é uma laguna brasileira localizada ao leste da ilha de Florianópolis, cercada por áreas de proteção ambiental e separada do mar apenas por alguns morros. Além de ser uma atração turística, o local abriga diversas espécies de aves, peixes e plantas aquáticas, e é uma fonte de renda para os pescadores locais.
Em janeiro de 2021, uma ETE (Estação de Tratamento de Esgoto) da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento), empresa pública estadual responsável pelo saneamento em Florianópolis, se rompeu e invadiu ruas e casas da região. A água foi parar na Lagoa da Conceição.
A pesquisa que revelou agora substâncias tóxicas para o meio ambiente na Lagoa da Conceição foi uma das medidas propostas pela Casan no Programa de Recuperação Ambiental, feito para mediar os danos ambientais e sociais causados pelo rompimento da ETE. Contudo, os pesquisadores sugerem que o crescimento da população no entorno da lagoa e a exploração turística também contribuíram para a contaminação do ecossistema.
A Casan destacou que o efluente tratado na Estação de Tratamento de Esgoto da Lagoa da Conceição é destinado à Lagoa de Evapoinfiltração (LEI), não sendo lançado na Lagoa da Conceição. “Os resultados indicam que a qualidade da água varia entre as diferentes regiões da lagoa, e o acidente não deve ser considerado responsável por essas alterações, uma vez que a água da lagoa já se renovou pelo menos quatro vezes nesse período. As condições observadas são influenciadas, principalmente, por fatores como o crescimento populacional e o descarte inadequado de esgoto”, afirmou a entidade.
Em nota, a Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável alegou que vai avaliar os dados sobre a presença de contaminantes emergentes na Lagoa da Conceição. “A partir dessa avaliação, serão adotadas as providências cabíveis dentro da competência da secretaria, em diálogo com os órgãos responsáveis pelo saneamento e pela preservação ambiental.”
O estudo que identificou substâncias tóxicas para o meio ambiente na Lagoa da Conceição foi publicado na revista Science of the Total Environment. Os pesquisadores o iniciaram há cerca de dois anos, a partir de coletas entre dezembro de 2022 e abril de 2023. O artigo ficará disponível gratuitamente até 8 de março e depois restrito apenas para assinantes do periódico.
Silvani Verruck, professora do Departamento de Ciência e Tecnologia de Alimentos da UFSC, que liderou o estudo, explicou que foram coletadas 27 amostras de água, 18 de sedimentos e 22 de biota (peixes e crustáceos). Nelas, foram detectadas 35 contaminantes de interesse emergente (CECs), nome científico dado para substâncias químicas que podem representar risco para a saúde humana e o meio ambiente.
“A benzoilecgonina (metabólito da cocaína) foi detectada em 63% das amostras. Sua presença está associada ao despejo de esgoto doméstico, já que o metabólito é excretado pelo corpo humano após o consumo de cocaína, mas o estudo também menciona a proximidade de áreas urbanizadas como fatores contribuintes”, apontou Silvani.
Segundo Silvani, os níveis da substância encontrada em Florianópolis são tão altos que se comparam aos de regiões urbanas da Europa e Ásia, onde contaminantes farmacêuticos e drogas ilícitas são frequentemente detectados em estuários – locais onde a água doce dos rios se mistura com a salgada do mar.
Nos últimos cinco anos, o metabólito da cocaína também foi encontrado em outros pontos do Brasil: nas águas costeiras de Santa Catarina, em tubarões das praias do Rio de Janeiro (RJ), no mar do Guarujá (SP) e também no de Santos (SP).
No entanto, a substância ilícita não foi a única detectada na Lagoa da Conceição. Fármacos muito populares no Brasil, como paracetamol e diclofenaco, também chamaram a atenção dos pesquisadores nas amostras. O café, uma das bebidas mais consumidas pela população, também foi parar na água.
Veja os contaminantes encontrados na Lagoa da Conceição:
- Acetaminofeno (paracetamol): 1.682-3.016 ng mL?¹;
- Cafeína: 4,02–55,89 ng mL?¹ ;
- Ciprofloxacina (antibiótico): 3,34-7,54 ng mL?¹;
- Clindamicina (antibiótico): 6,04–7,01 ng mL?¹;
- Diclofenaco (anti-inflamatório): 1,01–23,77 ng mL?¹.
Riscos ao meio ambiente
Essas substâncias podem impactar principalmente a fauna e flora local ao desequilibrar ecossistemas, afetando cadeias alimentares e a biodiversidade. Para banhistas, Silvani relata que não há evidências diretas de risco agudo, mas a exposição prolongada aos contaminantes não foi avaliada.
A pesquisadora detalha algumas medidas possíveis para reduzir a contaminação. Entre elas, melhorar o tratamento de esgoto, estabelecer monitoramento contínuo, conscientizar a população sobre descarte adequado de medicamentos e produtos químicos, além de ampliar pesquisas e iniciativas como o Reacqua (Recuperação de Água Contaminada por Destilação Solar Acelerada), que testa sistemas de descontaminação sustentáveis, como a destilação solar.
Silvani também defende a necessidade de políticas públicas de preservação ambiental específicas para contaminantes emergentes, como o metabólito de cocaína, já que o caso da Lagoa da Conceição não foi isolado.
“A contaminação na Lagoa da Conceição exige ações integradas entre governo, academia e sociedade para proteger ecossistemas e saúde pública”, argumentou.
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Os pesquisadores coletaram amostras em três áreas: nas imediações de uma estação de tratamento de esgoto (ETE), em zonas urbanizadas e em locais de importância ecológica. No laboratório, os materiais foram analisados a partir de uma técnica inovadora chamada LC-MS/MS (Cromatografia Líquida acoplada à Espectrometria de Massa em Tandem), que permite a identificação de 165 CECs no total. Os 35 encontrados na lagoa foram confirmados posteriormente por outra técnica, a de espectrometria de massa de alta resolução (HRMS).
Além da UFSC e Casan, o Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária) também apoiou a pesquisa, que foi financiada pela Fapesc (Fundação de Amparo à Pesquisa, Tecnologia e Inovação de Santa Catarina).