“Ninguém pode nos fazer se sentir inferior sem o nosso consentimento”, diz Lurdes Soares, 33 anos, com o filho Dérick nos braços após 14 horas de contrações e muita garra
Aos 7 anos de idade, um caminhão cruzou o caminho de Lurdes Soares e a sequela do atropelamento foi a amputação das duas pernas. Ela aprendeu a lutar pelos seus desejos sem pensar em qualquer limitação. “Tudo que fiz ou conquistei foi na cadeira de rodas, nem me lembro de ter outra condição”, pontua. A última conquista atende pelo nome Dérick. Tem só um mês de vida e nasceu após 14 horas de intensas contrações, respirações em sobressalto, gemidos e muita garra.
A experiência do parir natural foi desejada durante os nove meses de gestação de Lulu, como gosta de ser chamada a moradora de Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, e mãe de primeira viagem, agora aos 33 anos. Mas até chegar a dar à luz seu filho, ela ouviu que aquele corpo com deficiência física não seria capaz de vivenciar um parto como aquele.
“Esta era a minha vontade desde pequena, um sonho. Minha mãe pariu nove filhos! Mas tive muita dificuldade em encontrar um médico que topasse passar este momento ao meu lado. Visitei quatro doutores e todos tentaram me convencer a fazer uma cesariana. Eles usavam os mais diferentes tipos de argumentos: que a minha bacia não abriria, que meu corpo era pequeno demais, que eu passava muito tempo sentada. Mas eu sabia que podia. Eu tinha me informado e conhecia o meu desejo”, conta ela que conseguiu custear o parto, totalmente natural, por meio de uma campanha virtual e da ajuda de uma equipe praticante do parto humanizado.
O nascimento de Dérick foi mais uma das “teimosias” do bem da menina que estudou em um sem número de colégios por nem sempre conseguir transporte adaptado e, vez ou outra, precisar morar na casa de parentes para ficar mais próxima da escola. Virava e mexia precisava interromper os estudos por conta de uma cadeira de rodas quebrada ou da dificuldade de passar seis horas na sala de aula, sem ir ao banheiro, por falta de condições físicas dos sanitários escolares. Terminou o 3º ano do Ensino Médio já adulta e passou a trabalhar em dois empregos, como atendente de call center, para ajudar com as despesas em casa.
Apesar dos percalços, suas memórias não colecionam tristezas. Quando criança, Lulu não se lembra de ter sido privada de nenhuma brincadeira. “Brinquei de tudo que tive vontade. Não permitia que ninguém me deixasse de canto”, rememora. Ela acredita que, por causa da deficiência, prolongou a infância por mais tempo do que o habitual. Ninou bonecas até os 15 anos e driblou a chegada da adolescência e do amor o quanto pode.
“Nunca me senti tão poderosa”
Até que o coração passou a bater mais forte por aquele rapaz que conheceu na internet. Foram três anos trocando mensagens em um namoro virtual até o primeiro encontro. E o relacionamento floresceu por outros sete anos até a gravidez não planejada chegar para Lurdes. O bebê crescia em seu ventre e, junto, a vontade de não fazer parte da estatística considerada epidêmica no Brasil.
Atualmente, o índice de cesáreas está em 90%, apesar deste método ser indicado só em casos de exceção. Uma parte das cirurgias, sem indicação clara, é acompanhada de um discurso que dissemina insegurança nas futuras mães. O argumento recorrente é o de que o parto normal pode colocar em risco a saúde da mulher e do bebê. Não foi diferente com Lulu.
Mas ela, já acostumada a duvidarem do seu corpo e das suas capacidades, deu de ombros para as dificuldades atribuídas. “Alguém um dia me disse que ninguém pode nos fazer se sentir inferior sem o nosso consentimento. Eu não permito”, diz enfática. “Apresentar o mundo ao Dérick da forma como eu apresentei foi mágico. Nunca me senti tão poderosa”, diz.
A melancolia jamais marcou os dias de Lulu e agora ela diz estar embriagada de felicidade e realizações. Tornou-se mais uma voz do ativismo do parto normal e quer, por meio de sua história, mostrar que os limites impostos pelo preconceito não precisam ser definitivos.
Os últimos dias têm sido de amamentação exclusiva e sensação de plenitude. O gosto ela diz que é de “vitória simples”. “É assim: nós mulheres sabemos parir. E nossos filhos sabem nascer.”