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Paraíba tem Memorial do Cuscuz, prato declarado Patrimônio Imaterial pela Unesco

Paraíba tem Memorial do Cuscuz, prato declarado Patrimônio Imaterial pela Unesco

Quem planta sabe que se não chover até o dia de São José, 19 de março, vai perder o milho na boneca (expressão usada para dizer que os grãos não vão se desenvolver). No entanto, se do céu vem água, a primeira grande colheita acontece no dia de Santo Antônio, celebrado em 13 de junho. O auge da colheita é entre o dia de São João, 24 de junho, e São Pedro, dia 29. Daí o São João ser a grande festa do Nordeste. É a nossa festa do milho, da colheita. É a fartura no prato.

O milho é sagrado. Uma bênção que mata a fome de muita gente por esse Brasil afora. Ninguém, no entanto, tem mais intimidade com esse ingrediente que o povo nordestino. Em toda casa que se bata, há de haver cuscuz, manguzá (ou mungunzá), manuê, xerém, curau ou canjica.

Na época da Festa Junina, as famílias se reúnem nas ruas, armam fogueiras e compartilham a comida e a fé. É bonito de se ver. Ao som da sanfona e sob as bandeirinhas coloridas, se brinca a quadrilha e se agradece a abundância.

 

 

O milho é tão essencial da identidade cultural brasileira, que o cuscuz foi declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco em 2020. E se título não enche barriga, existe um lugar na zona rural de Ingá, pertinho de Campina Grande, na Paraíba, onde é possível apreciar de faca e garfo o tradicional cuscuz preparado na lenha.

Há muitas gerações a receita vem nutrindo a família de dona Lia que, em 2015, fundou o Memorial do Cuscuz. É na casa da cozinheira que o quintal se transformou em um ranchinho de roçado.

 

Ali, ela reúne tudo o que há de mais importante em sua vida: lembranças e relíquias que contam a história de sua família. Na estante, um ferro pintado de verde claro foi usado para engomar os panos quando Lia nasceu, há 67 anos. Já a máquina de costura foi de sua bisavó. Por ali, tem de tudo um pouco, garrafas, revistinhas de cordel.

 

Na pequena cozinha, onde está instalado o fogão a lenha, panelas bem areadas ocupam as prateleiras. Diante da parede esfumaçada, descansa uma cuscuzeira de barro e uma antiga chaleira. Em outro canto, imponente, está um moinho, herança de sua avó indígena.

Naquele instrumento, mãos e as pedras de mó trabalham juntas em sincronia transformando grãos de milho em farinha. Foi com essa avó que Lia aprendeu a receita.

“Ela fazia por tradição, eu comecei a fazer por precisão”, diz.

 

 

Quando se casou, aos 19 anos, mudou-se para o Recife. “O marido não queria trabalhar e eu via os filhos caindo de fome. Foi quando me lembrei do cuscuz da minha infância. Comecei a fazer e meu filho levava as bacias para vender na porta das obras”, conta.

Lia voltou para sua terra para cuidar da mãe doente, o que fez por 22 anos. Quando ficou órfã, resolveu criar o Memorial do Cuscuz para homenagear o alimento que sustentou seus quatro filhos.

Primeiro, vieram os vizinhos experimentar a comida de dona Lia. Depois, gente de longe, até de outros países passaram frequentar o quintal coberto de bandeirinhas. É só ligar e marcar que a cozinheira prepara o cuscuz e outras especialidades nordestinas para acompanhar como galinha capoeira, charque e tapioca.

“Cuscuz combina com tudo, até com banana e rapadura”, afirma a cozinheira.

 

O milho utilizado no preparo vem da Fazenda Mamoeiro e é plantado pelo irmão de Lia, seu Ernardes. “A gente planta no rastro da chuva”, explica o agricultor, que aprendeu a lidar com a seca.

O modo de preparo utilizado é o cabeça amarrada. Em um prato fundo, dona Lia distribui a farinha de milho flocada e hidratada – “por pelo menos duas horas, para ficar bem soltinha” – e vai intercalando com queijo coalho ralado.

Um tanto de farinha, um tanto de queijo, um tanto de farinha… E vai assim até formar uma montanha bem amarelinha. Depois, com o cabo de uma colher de pau, se faz alguns furos para que o vapor consiga chegar até o seu interior e o cozinhe por completo.

Com um pano de prato umedecido, ela cobre o cuscuz e torce o pano bem justo para que o preparo não se desfaça. Uma verdadeira arte de destreza. Ele é então colocado de cabeça para baixo na cuscuzeira. “O prato está pronto quando a cozinha começa a cheirar milho”, explica.

 

E assim dona Lia vai contado sua história, cuscuz após cuscuz, ano após ano. “Enquanto puder colocar os pés no chão e as mãos para cima para agradecer a Deus, estarei aqui.” Como um dia disse Euclides da Cunha, “o nordestino é, antes de tudo, um forte”.

Para quem quiser conhecer de perto essa riqueza plantada na Paraíba é só agendar a visita pelo (83) 99129 9456 ou pelo @lia_memorial_do_cuscuz

Da CNN/vavadaluz