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O poeta e a lenda

Poetas se transformam em poesia
Quando fingem morrer à eternidade.

Um clássico nas artes e na literatura é um trabalho cujo fim remete sempre ao início, como numa eterna samsara. Também o é aquilo que exige agregação de um valor de quem o experimenta, ou sente. Enfim, os clássicos não têm datas, acendem uma luz de uma época e são populares sem intermediários.

O poema Habeas Pinho, de Ronaldo Cunha Lima, está passando por esse caminho – em busca da lenda. Uma lenda é a sublimação do clássico: ocorre quando um trabalho artístico ou literário se expõe às versões.

Com o Habeas Pinho, Ronaldo abriu uma vereda estética pela qual os caminhantes optam sempre, seja por curiosidade, didática ou pedagogia.

A advocacia é, por natureza, uma defesa (mesmo contestando). Para tanto, diz-se entre os advogados que o direito de pedir é universal e infinito. No poema, o poeta-advogado pede para liberar um violão apreendido como, na expressão poética: instrumento do crime.
Diz das virtudes do suposto réu, um seresteiro, e das qualidades do instrumento, agora, musical.
Pela biografia em formação do poema, o juiz teria dado o mote ao poeta para que examinasse a possível liberação: um boêmio apaixonado, um violão apreendido e um poeta-advogado.

Exímio datilógrafo, ex-funcionário de cartório, o poeta toma por empréstimo a máquina do próprio juiz e propõe, aos costumes e em termos, a petição Habeas Pinho. O juiz entra na história e defere o pedido sentenciando em versos.
As cores da lenda são tantas que já se encontra o poema com autores diversos e, também, em poesia, um outro juiz deferindo, um oficial de justiça cumprindo a ordem, o depositário judicial entregando o violão.
Aliás, já se soube de queixas poéticas do delegado que apreendeu o violão e dos agentes policiais que o acompanharam, por não poderem participar do poema original.
Para fechar ‘os autos’, a mulher, destinatária melódica do boêmio, também pensou em estar nesse parnaso.

O poema merece ser ouvido na voz do autor (há um link para tanto).

Melhor, agora, que os que conduzem o verso à sublimação do clássico à lenda, pela imortalidade, podem ver o poema em movimento, no cinema.

Ronaldo Cunha Lima foi um poeta extraordinário, em tempo integral. Trabalhei com ele por muito tempo, e sempre que pretendia tratar de um tema árido comum à burocracia dos mandatos que ocupou, encontrando-o dedilhando com a mão direita sobre a esquerda, como um pianista virtuoso, eu nunca me permiti interromper: o poeta estava tocando uma poesia. Quando muito, deixava um mote de desafio. Esse foi um dos pontos que nos amarraram tanto.

No filme Habeas Pinho, em um cenário confortante aos olhos, atores vão dando vida aos versos do poema, permitindo ao espectador vivê-lo e participá-lo. Por ouvir histórias fascinantes de algumas pessoas destacadas na fita, eu me emocionei com Asfora, Tejo, Loureiro e aquela mulher, cujos traços são um resumo de todas as musas poéticas.

Se me permitem uma provocação, eu diria: participem dessa lenda. Vejam o filme Habeas Pinho.

 

Por Irapuan Sobral

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