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O Messias e o Reborn

“O Estado cresce à medida que o indivíduo desaparece.” — Will Durant

“Uma grande civilização não é conquistada de fora até que se destrua por dentro.”
(A História da Civilização, Vol. III – César e Cristo)

Outro dia, lendo mais uma dessas manchetes em que a política virou religião, e a religião, caricatura, me veio uma imagem: o espírito e a alma fizeram as malas e foram embora. Saíram da vida humana sem muito alarde, apenas cansados. Julgaram-se desnecessários.

O materialismo hedonista — esse que reduz a vida à fricção do agora — arrancou a alma da existência desde o útero, onde a mulher virou depósito e a maternidade, uma função técnica. Tirou-se o mistério da criação e colocou-se no lugar um protocolo.

Depois, foi-se negando tudo o que é par de comunhão à vida, razão e fé, corpo e espírito. A simetria que sustentava o mundo foi substituída por um espelho rachado — cada um só vê a si mesmo, deformado. E quando se quebra o espelho, não se vê mais ninguém. Só versões.

O amor virou pauta. A educação virou apostila e diplomas em paredes sujas para gratificações nos holerites ou para conversas por um ‘thesaurus’ cansativo com autoridade ilegítima em convescotes de elogios mútuos reproduzindo narrativas. O artista virou funcionário do Estado. O saber, uma propriedade cercada de lacres. Quem não assina a apostila da vez não tem lugar. E quem tem lugar, tem medo. Porque não se pode mais pensar em paz. No lugar da alma, uma boneca de plástico. No lugar do espírito, uma hashtag.

A reprodução — no sentido mais amplo: gerar vida, ideias, vínculos, beleza — passou a ser suspeita. Tudo deve ser neutro, estéril, inofensivo. Produz-se o nada, mas com a pompa de quem pretende criar tudo. E nesse vazio, o humano substitui o sagrado por simulacros. Como se o barro se rebelasse contra o sopro. Até lembra os tempos de Daniel.

No Brasil, esse delírio gerou um tipo novo de poder: um governo Roborn — renascido não das urnas, mas do cálculo. Foi concebido num consórcio de narrativas, blindado por instituições que não se fiscalizam, mas se protegem por cumplicidade. Um sistema que deveria operar com freios e contrapesos passou a funcionar como engrenagem de conivências e conveniências mútuas.

Tudo isso em nome da ‘segurança democrática’, que substituiu a ‘segurança nacional’. Mas o cidadão comum, aquele que sai cedo pro trabalho e volta tarde, esse sim, está inseguro. Porque a insegurança agora é viver, passear — e, pior, pensar.

O mais trágico é que o Renascimento, aquele que encontrou luz no medievo e fez florescer o humano, tornou-se hoje a palavra que enterra a vida — talvez a própria criação — no vale da sombra e da morte. Porque dele nasceu a liberdade que perdeu o Pai, a arte que perdeu o sagrado, o homem que esqueceu o céu.

O que falta, agora, não é mais luz; é um bebê, talvez um Messias, que venha ressuscitar a salvação, no velho e literal sentido da palavra: do latim suscitare — levantar-se outra vez, como quem volta da morte, mas agora lúcido.

Porque o que precisa renascer não é a narrativa da vez: é a vida — e dela a responsabilidade da cidadania. Com espírito. Com alma. Com responsabilidade.

É isso ou o plástico.

“Devo estudar política e guerra para que meus filhos tenham liberdade de estudar matemática e filosofia.
Meus filhos devem estudar matemática e filosofia, geografia, história natural, arquitetura naval, navegação, comércio e agricultura, para dar aos filhos deles o direito de estudar pintura, poesia, música, arquitetura, escultura, tapeçaria e porcelana.” — John Adams, carta a Abigail Adams, 12 de maio de 1780. In: The Adams Papers: Digital Edition, Massachusetts Historical Society.

Por Irapuan Sobral

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