Fascismo não é o que se fala; é o que se pratica.
As tiranias não terminam; reciclam-se nas oposições que elas próprias escolhem para sucedê-las. A ideologia da segurança nacional, que justificava o regime de força, renasceu na forma da IDEOLOGIA DA SEGURANÇA DEMOCRÁTICA: uma doutrina simétrica à tirania que a antecedeu, mas travestida de legalidade, linguagem progressista e blindagem institucional. Sai o coturno, entra o parecer. Sai a censura com carimbo, entra o algoritmo com filtro e sentença. O que mudou não foi a lógica, mas a estética.
Hoje, persegue-se a ‘desinformação’, censura-se ‘para proteger’, silencia-se ‘em nome da democracia’. Mas o princípio é o mesmo: governar contra o povo em nome do povo. A segurança democrática é o nome novo de uma prática velha: o fascismo civilizado, adaptado à era dos editais, dos tribunais midiáticos, dos discursos higienizados. Não é um fascismo de marchas e fardas. É um fascismo de deliberação e controle — de jaleco, toga e crachá, para as primeiras páginas.
A oposição à tirania herdou seus instrumentos. A tirania não foi derrotada; foi absorvida. E no poder, seus antigos críticos passaram a imitá-la: censuram, fiscalizam, punem, multam, taxam, eliminam, condenando em tribunais sem alçadas, a oposição – agora com respaldo institucional. O governo passou a governar a democracia, e não o contrário. O povo, por sua vez, recebeu uma democracia limitada ao botão eletrônico da urna — uma VOTOCRACIA, onde se escolhe sem poder auditar e se participa sem governar. Os direitos e garantias, fundamentos de qualquer democracia, tornaram-se acessórios: condicionados, negociáveis, ou simplesmente descartados. Democracia republicana, senhores juízes supremos, não é sobre poder; é, diferentemente, sobre direitos, garantias, acessos e disponibilidades desse poder.
No plano da linguagem, a infecção é generalizada. Narrativas cuidadosamente moldadas contaminam o cotidiano. Já não se pensa – repete-se. Já não se duvida – concorda-se. É a famosa sepse institucional por metástase discursiva: a linguagem pública virou seringueiro do medo. O vocabulário democrático se tornou manual de contenção. Há mais medo do que esperanças. Mais silêncio do que escuta. Mais liturgia do que liberdade. Um exemplo clássico do hino das tiranias é a juventude como eco do governo. Juventude governista é fascismo.
A arte perdeu o público em favor do erário. A universidade virou fábrica de narrativas oficiais. A imprensa depende do Estado para sobreviver à realidade crítica digital. E os três poderes se amarram por chantagens recíprocas e segredos, garantindo, mutuamente, os erros comuns. Um julga, mas teme ser julgado. Outro legisla, mas não fiscaliza. O terceiro, que pouco executa, serve apenas para culpar os outros. Não há mais República. Há um condomínio de castas protegidas.
Os governantes se cercaram de tantas proteções e privilégios que eliminaram o povo do seu horizonte real. Já não há nexo entre governantes e governados. Vivem em condomínios fechados, cercados de seguranças que afastam qualquer um, inclusive a sensatez. Usam carros de luxo e aviões oficiais, nunca o transporte ou ambiente coletivo. Empregados fazem as feiras. Têm marqueteiros, não consciência; narrativas, não responsabilidade. E como a culpa é sempre um produto indesejável, e deles, entregam-na aos adversários — transformados em inimigos públicos. A política, que deveria buscar mediação, passou a depender de um inimigo permanente para justificar a própria existência. A autoridade se divorciou do povo, e agora o olha com desconfiança. Já não o entende – e, por isso, o teme. O povo é muito forte e incontrolável – no despertar do cansaço.
Esse abismo alimenta o terrorismo simbólico cotidiano: ameaças fabricadas, emergências encenadas, vigilância justificada por perigos difusos. É o governo que declara guerra contra a sua própria fonte de legitimidade.
A ideologia da segurança democrática atinge seu ponto mais perverso quando nega os fatos visíveis em favor da narrativa desejada. Não se trata mais de manipulação sutil: é a inversão deliberada do real. Mesmo diante do evidente, se impõe o discurso que diz: “Isso não é o que você está vendo.” Isso ocorre na comunicação dos poderes, na funcionalidade das instituições, no uso do marketing para encobrir decisões, no engarrafamento proposital de temas que deveriam ser debatidos, e até na negação simples e crua do que é público, registrado e filmado ‘ao vivo e em cores’. Como a comunicação chegou ao controle do indivíduo, querem negar o indivíduo. Ao negar o sujeito, o regime tenta dissolver a experiência — e com isso, subjuga a consciência. O fascismo, agora, é algoritmo, é script de coletiva de imprensa, é manual de assessoria. Não é mais apenas a violência: é o silenciamento do discernimento. É o inferno, naquela concepção teológica que o distingue do céu: ‘em todo instante há uma novidade ruim, para evitar a adaptação ou, ainda pior, um despertar.’
E aqui se revela a verdade que muitos temem dizer: a ideologia da segurança democrática é o fascismo em sua forma mais eficaz. O FASCISMO NÃO É O QUE SE DIZ; É O QUE SE PRATICA. É o governo que escolhe o povo — não o contrário. É a normalização do medo. É a exclusão do dissenso. É o anonimato necessário para sobreviver. É o pensamento único mascarado de consenso técnico. É a substituição do direito por força protocolar. É o argumento de autoridade que não se submete ao povo. É o artista que canta para o edital, e não para a praça. É o servidor demitido sem justa causa, e ninguém reage. É o intelectual que confunde diplomas emoldurados em paredes que não se limpam a razão. É o transporte individual promovido contra o público. É o poeta que fala para poetas — e esquece o povo. O FASCISMO É, CONCEITUALMENTE, O GOVERNO DO GOVERNO, PELO GOVERNO E PARA O GOVERNO, SOB A INFLUÊNCIA DE GRUPOS, CONTROLANDO A LINGUAGEM, A NARRATIVA, A IMPRENSA E A POLÍCIA, SEM O DEVIDO PROCESSO LEGAL, ACESSIBILIDADE OU DISPONIBILIDADE DO PODER.
Fascismo é tudo isso que se normalizou, com crachá e discurso de ética. Na democracia verdadeira, o povo escolhe o governo. No fascismo, o governo e os grupos escolhem o povo que serve. E quando a democracia ameaça se tornar real — participativa, popular, viva — os poderes reagem como feras acuadas. O monstro desperta, mesmo que seja para morrer. Seu último ataque é o mais perigoso.
Porque não há mais espaço para o velho poder. E, no poder que se anuncia, não haverá lugar para autoridades que não saibam servir. A democracia não é o governo que se protege. É o que se oferece. É o que se limita. É o que se submete ao povo — ou não é democracia.
A República, portanto, não é publicidade. É disponibilidade. É acessibilidade. É a presença real do poder diante do povo que o sustenta. Na sua pureza popular, a República só pode renascer pelo que a modernidade oferece: as redes, a internet, a inteligência artificial — instrumentos que tornam o saber e o poder acessíveis a todos. Se há más informações, essas não se combatem com censura, mas com mais informação, mais voz, mais luz ou, ainda melhor: COM EDUCAÇÃO.
E se, como canta o coral da Nona Sinfonia, todos os homens agora têm os dons que os distinguem como humanos, então todos têm também o direito de exigir que o poder se transforme em garantias, em responsabilidades, e não em desculpas.
Governantes não têm o direito de desculpas; têm o dever de respostas.
E os aposentados continuam sendo roubados!
Por Irapuan Sobral