Cada morte acontece como única, e também conforme o modo de presença, nas nossas vidas, das pessoas que amamos. Nesse sentido, ninguém deixa de amar. Ser único se revela naquilo de extraordinário em cada amigo. E Aranha (1946), ao ser único, nunca conheci quem quisesse imitá-lo ou ter a coragem de ser semelhante a ele, verificando-se assim insubstituível ou único. Com uma amizade também diferenciada, sua conduta era só dele, somente encontrada na profundeza da amizade.
Mais ou menos em 1961, fui aconselhado a ler um livro, que vinha conseguindo fama desde 1947: O Excêntrico Mr. Blue, de Males Connolly. Foi leitura rápida, por conta da disponibilidade e da curiosidade do leitor. Ainda hoje me recordo que Mr. Blue era um jovem extraordinário, que morava, com o zelador do prédio, num pequeno quarto, na cobertura de um dos arranha-céus, nos Estados Unidos, o que lhe propiciava o esquecimento das suas pobreza e angústias existenciais. De lá, contemplavam a riqueza da cidade dos outros altos edifícios, o movimento dos seus habitantes pelos faróis acesos, mas, com os mesmos olhos, a inspiradora visão de um céu iluminado por estrelas e astros, tudo num firmamento de sonhos, que os elevava da Terra a um maravilhoso infinito e a uma profunda intuição do ser e da existência. Ninguém, da população daquela cidade, teria, como esses pobres sonhadores, uma visão tão extraordinária e esplendorosa.
A essas alturas, Aranha, como eu aos quinze anos, caminhava, cogitabundo, entre as muitas mangueiras do seu vizinho, o Seminário Arquidiocesano, e colhendo mangas maduras para a sua mãe, Dona Antonieta. Eu, que o via pelas ruas do Roger ou pela Praça Dom Adauto, à frente da sua casa, conheci Aranha mais de perto, o que prometeu uma amizade que se estende além da sua morte, ocorrida nesse 11 de novembro, quando falei, no seu velório, na Academia Paraibana de Letras: “Prezado, Aranha, tive a ideia de trazê-lo à imortalidade desta APL, agora estou aqui para, em nome da nossa confraria, saudar sua partida desta Casa”.
Sempre volto a visitar o pátio interno da Igreja São Francisco, onde revejo as velhas mangueiras, sob cujas sombras, reuníamos para o “Ver, julgar e Agir”, da Juventude Estudantil Católica (JEC); onde, recreávamos repassando as belas composições da Bossa Nova, às vezes, com as belas presenças de Socorro Vilar e de Socorro Fragoso; e onde, perto da mais frondosa mangueira, enterramos, evitando alguma perseguição em 64, centenas de exemplares do Brasil Urgente (1963 – 1964), o qual Aranha dizia ser “um jornal do povo a serviço da justiça social”. O Brasil Urgente, talvez ainda hoje, encontre-se nas hemerotecas de alguma instituição.
Aranha, às vezes, manifestava atitudes estranhas, compreensíveis em respeito à sua genialidade. Dedilhava com destreza o violão ou a guitarra, como, rápido, a velha máquina Remington, matéria para os murais ou para os jornais, quando começou sua brilhante carreira de jornalista. Certo dia, há dois anos, de repente, próprio dos seus in sight, estranhou que o chamasse de Aranha: “Não gosto que você me chame de Aranha”. Justifiquei-me que, há anos, sempre o tinha chamado assim. Mas, nada adiantou, zangado, insistiu: “Não, não tolero, meu nome é Carlos”. Silenciei-me e me transportei às conversas que mantínhamos, em 1961, sobre o esquisito Mr. Blue, estava ali no excêntrico mister Aranha. Depois da morte de um amigo, não há retorno, tudo é igual, mesmo quando haja muita excentricidade.