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O candidato

Analfabetismo

O candidato discursava sobre liberdade, democracia e julgamentos — e, de tanto repetir, desgastava ainda mais a palavra povo.

A plateia, já entorpecida, abanava-se com panfletos. O suor escorria pelo colarinho do orador, mas a retórica não saía do lugar.

Foi então que uma senhora, atravessando a rua com as compras do dia, resolveu cortar-lhe o fio da fala.

— Democracia é só sobre legitimidade do poder: quando o governo nasce do povo, as suas ações passam pelo povo e interessam ao povo. Tudo que é propaganda e narrativa se dissolve no ar.

Depôs as sacolas sobre a mesa vizinha, ajeitou a saia com um ar professoral e, diante do silêncio embaraçado, concluiu:

— Em Analfabetismo, crônica publicada por Machado de Assis em 15 de agosto de 1876, está dito: “A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o Sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito a todos superior a todos os direitos.”

O candidato pigarreou. Alguém bateu palmas sem convicção. No ar, o que restava não era a promessa, mas a lição: às vezes, uma dona de casa com sacolas pesa mais que um comício inteiro

Por Irapuan Sobral

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