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Nenhuma palavra é vazia (Damião Ramos Cavalcanti)

 Havia no internato uma mania de se classificar um ao outro, mau costume de quem vive em grupo, em convivência prolongada, comparando-se um ao outro em qualidades e defeitos, mesmo quando em ninguém é cabível uma exata classificação, em razão das diversidades e semelhanças de cada um, sobretudo entre aqueles que se invejam. Outro sestro comunitário era o de apelidar quem já tinha nome próprio, denominando quem possui características marcantes, maiores ou menores do que era comum, em sentidos jocosos ou hilariantes. Se o apelidado reagisse ou se irritasse, então o apelido pegava, porque uma das intenções era exatamente aborrecê-lo.
          Mas, para aqueles que falavam muito, o especial era “matraca”, instrumento usado na liturgia da Semana Santa, de sons secos, repetidos e próprios da penitência. Intelectualmente ferino era tachar quem muito falava e nada dizia de “vazio”, o que significava também nada a dizer, depois de muita verborreia, de intolerável verborragia, de que não se tirava alguma ideia, alguma coisa que se aproveitasse ou gerasse qualquer assunto que se mantivesse de pé; tratava-se de quem falava e muito, mas frases sobre o óbvio e o mais do que corriqueiro. Como conversar com um “indivíduo sem assunto”? Então ser chamado de “vazio” seria ser tratado de carente de conhecimento, sofisticavam até tal ignorância: carentia cognitionis, que foneticamente explícito, traduziam para humilhar: “Isto é, carência de conhecimento”.
          Porém, há quem compreenda que de qualquer besteira pode surgir ou se originar uma boa ideia ou surgir um campo de conversa, que se prolonga até atingir coisas interessantes, mesmo correlatas ao que não parecia tão interessante… Mas, ser completamente vazio era uma classificação que magoava, sobretudo num meio intelectual. Seria amiudar para o sentido de que o vazio mancava no caminhar da inteligência: via, apreendia, mas não compreendia… Enfim, o que seria esse ser vazio para ofender tanto?  A palavra “vazio” vem do latim vacuus, que significa além de “vazio”, “oco” ou “sem conteúdo”.  Na leitura de Aristóteles e dos peripatéticos, apesar de serem contraditos por Pascal, Natura abhorret vacuum ou a natureza tem horror do vácuo. Certamente, porque  a natureza é como um jarro, feito para ser preenchido… Ou a natureza, digo ao inverso, é o próprio preenchimento do universo, do cosmos…
         O cronista Rubem Alves, numa de suas crônicas, escreve que a palavra compreendida se torna vazia. O que não compreendi, ela devém, talvez, não adequadamente compreendida no contexto em que foi pronunciada ou dialeticamente gerando outros significados e ideias. Mas, a palavra ou o termo encerra em si, por definição, o seu significado, o seu conteúdo, mesmo que ela ganhe, sem amarras, toda a liberdade na poiesis , e por isso não existe poesia vazia, porque o próprio vazio faz parte da universalidade da poiesis. E a poesia não esgota, na sua interpretação, o sentido da palavra… Se Rubem Alves acha que a palavra é um vazio que nunca se enche, admite que de algum conteúdo o verbum se encontra preenchido…
         A plena liberdade de pensar requer o vazio, para que nele encontre, de modo criativo, o novo pensamento e, dialeticamente, o novo se adapte ou se contraste com o anterior da palavra preenchida. Por isso, penso que as palavras podem ser não tanto faladas, mas elas subsistem e dão continuidade às suas existências… Depois de criada, nenhuma palavra é vazia.

 

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