Na terra de Dorothy Stang, líder ameaçado pede socorro novamente
No sul do Pará, a gleba pública federal Bacajá, um imenso território de mais de 80 mil hectares criado em 1983, é uma das regiões mais conflituosas do país quando se trata da disputa fundiária.
A Bacajá fica no município de Anapu, mesmo local onde a missionária norte-americana Dorothy Stang foi assassinada em 2005. É lugar onde quase sempre prevalece a lei da pistolagem aliada à impunidade.
Não é de hoje que agricultores que tentam fazer assentamentos sustentáveis em áreas públicas destinadas à reforma agrária enfrentam a fúria de grileiros que se apresentam como fazendeiros. É o caso do Lote 96, dentro da Bacajá.
No local, sob a liderança de Erasmo Alves Theofilo, 54 famílias de agricultores aguardam há cinco meses uma sentença na justiça paraense que vai definir a posse de uma área de quase quatro mil campos de futebol.
Segundo o Incra, a área deve ser destinada à reforma agrária. “É uma região de conflito, entendo que é um processo complexo, mas desde outubro [2020] já são cinco meses [sem definição da sentença], com pessoas que já estão em sistema de proteção”, disse à Agência Pública a defensora pública agrária Bia Albuquerque.
Os conflitos que se arrastam há 10 anos envolvem diretamente uma família de fazendeiros e pecuaristas acusados de grilagem que alegam ser os donos da terra. Contra a família Peixoto pesam denúncias de ameaças, queima de casas e desmatamento ilegal, segundo o Ministério Público Federal.
Erasmo Alves Theofilo já sofreu três atentados em mais de 11 anos na região. Em 2019, após ter tentado assassinar Theofilo, um homem conhecido como “Queima Barraco” foi morto numa troca de tiros com a PM. No final de 2019, conflitos na região vitimaram duas lideranças, amigos próximos de Erasmo. Em 2020, em novo atentado, Erasmo precisou sair de Anapu.
“Aqui ou te matam ou tentam te comprar”
Vítima de paralisia infantil, Theofilo não pode caminhar por não ter movimento nas pernas. Jurado de morte, a liderança entrou para o programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Pará.
Ele contou à reportagem que já conversou com um capanga de um fazendeiro. “O cara me falou que fizeram uma reunião pra discutir se iam ou não me matar”. Erasmo soube que sua cabeça valeria 100 mil reais neste dia. “Se eu pensar nisso, eu piro”, disse.
Mesmo à distância, Erasmo mantém diálogo diário com a comunidade e explica que a situação está sob tensão, com tentativas de extorsão e ameaças para que membros da comunidade deixem o local.
Ele conta que recentemente foi procurado por intermediários com uma oferta de 300 mil reais para que deixasse de lado a liderança da comunidade e incentivasse a venda da área. “Avisei a comunidade. Denunciei todo mundo”. “Aqui ou te matam ou tentam te comprar”, afirma.
Erasmo conta que homens percorreram o local nos últimos meses se dizendo corretores que iriam comprar a área “em nome de Bolsonaro e seus filhos”. Em Anapu, explica Erasmo, desde que o presidente foi eleito, a atmosfera se tornou ainda mais pesada. “A sensação que nós temos é que os grileiros ganharam permissão para nos expulsar, intimidar e matar”, diz.
Mesmo sob proteção, Erasmo não se sente protegido. Na avaliação do líder camponês, também policiais ligados a sua proteção teriam vínculos próximos com gente interessada nas terras assentadas.
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sob Bolsonaro os conflitos no campo aumentaram.
Em nota, a CPT diz que “as famílias e a situação no Lote 96, cujo dono pretendente é Antônio Peixoto, estão em perigo imediato”. Além disso, moradores relataram invasões e atentados a fogo contra suas casas nos últimos meses.
“Vocês não são bem-vindos e vocês sabem disso”
Um vídeo obtido pela Pública mostra dois homens na residência da moradora Ronieli Brito, do Lote 96. Segundo testemunhos, seriam os mesmos que tentaram comprar os lotes em nome do presidente. Ela está sozinha no momento com o filho pequeno, que não aparece nas imagens. A assentada contou que começou a filmar por segurança.
Os homens foram identificados posteriormente pelos nomes de Henrique e Leomar e são de Pacajá, município vizinho de Anapu.
Moradores suspeitam que eles são ligados ao fazendeiro Antônio Borges Peixoto.
Após o episódio, Ronieli e seu companheiro Lucival Fernandes da Silva precisaram sair às pressas quando um terceiro homem armado não identificado apareceu no local durante a madrugada. “Nós tá se sentindo ameaçado mesmo, por que a pessoa vir uma hora dessa na casa da gente com arma, com certeza não é coisa boa que ele tá planejando. E tamo aí pra esperar o que a justiça vai decidir pra nós”, diz Ronieli.
O companheiro de Ronieli, Lucival Fernandes, pede mais segurança às autoridades. “Eu quero ficar aqui com segurança. Eu quero um termo de viver pra mim e pra minha esposa, em qualquer justiça do mundo aí, a gente quer um termo de viver. Por que o cara hora dessa na minha porta com arma moço, isso é covardia. Tá feio”, reclama.
Queimarem casas “virou hábito”
A defensora Bia Albuquerque, também à frente do caso, explica que acionou a justiça para impedir novas invasões dos “pretensos proprietários da área”. “Foi concedida liminar favorável, a PM começou a fazer a segurança na área e aí recebemos notícia de que alguém teria incendiado a casa de farinha de um outro morador”, completa.
A defensora se refere à propriedade do agricultor Lindoval Ferreira da Silva que foi incendiada no dia 26 de março — há 11 dias. Lindoval vive e se sustenta da roça. Como mostra o vídeo abaixo, o lugar ficou destruído pelo fogo. Lindoval não viu quem incendiou o local. O caso foi encaminhado à Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Altamira, explicou a defensora.
O problema, explica Erasmo, é que “virou um hábito” queimarem casas sem ninguém ser investigado e punido. “Já foram umas três casas queimadas nos últimos meses”.
Imagens mostram também a destruição da casa do agricultor José Pereira de Oliveira, 59 anos, em outubro de 2020. “Queimou tudo, as plantações, queimou barraco, queimou tudo. Eu só quero que a justiça tome providência disso aí que tá fazendo cinco meses e até hoje eu não vi um resultado”, reclama. Ele se refere à sentença que poderia botar um ponto final ao conflito.
Segundo o agricultor, ele teria visto “um vaqueiro do senhor Antônio Borges Peixoto” saindo do local quando do incêndio de sua casa.
“Eu vi um vaqueiro do Peixoto, moreno, magro, alto. Ele saiu se despistando com conta que não era ele. A 100 metros era a cerca da divisa nossa com seu Antônio Peixoto. Ele montou no burro e saiu gritando o gado disfarçado mas não adiantou o disfarce dele por que foi ele que saiu de lá da residência”, denuncia.
Sua companheira, dona Baiana, desabafa: “Eu estou querendo receber o que foi destruído da minha casa, por que não tem condições de deixar uma velha de 60 anos só com a roupa do corpo. Eu nunca fiz nada de mal, tô querendo é conseguir meu pedaço de terra pra mim trabalhar. Eu não tô roubando, eu tô trabalhando em cima da terra. Que vocês tomem providência enquanto é cedo. Se tem justiça, eu quero justiça”.
A reportagem não localizou o fazendeiro Antônio Borges Peixoto até a publicação.
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública