“Eu, como os cegos de nascença, não quero ver. O real não está no olhar.”
Para os “quânticos”, há uma densidade fatual nos movimentos das pessoas que consente encontros — e desencontros — de maneira tal que tudo, a rigor, já estaria estabelecido.
Guardião da minha liberdade, prefiro dizer que, ao próprio descanso, Deus soltou a liberdade — para ser reencontrado. Nós é que, na dificuldade de domar esse sentimento, damos os nomes de acaso ou de destino.
Eu estava no Café São Braz, no Shopping Manaíra. Sozinho, ocupava uma mesa grande demais para mim. Ao notar que uma mesa menor estava vazia, mudei.
Um som de piano, ao lado, deixava escapar um Noturno, de Chopin — que Catulo chamou de “a alma da melancolia”. Vi que um jovem tocava. Em seguida, Nazareth se espalhava com o seu Odeon, ao qual sempre me remeto por Nara Leão. Nazareth persegue o infinito, iludindo cada acorde com pequenos passos que parecem novidades, mas nunca passam do mesmo horizonte.


Um senhor caminhava ao meu lado, entre o piano e o balcão do café, sussurrando preocupações:
— Alguém vai reclamar! Alguém vai reclamar! Vão mandá-lo sair!
E, de fato, uma senhora chegou e pediu que o pianista se retirasse.
O senhor, então, foi até o piano, abraçou o garoto e o conduziu às imediações da mesa. Ofereci os lugares vazios, e passamos a compartilhar conversas, sucos, águas e cafés.
O jovem, após ser apresentado pelo senhor — seu pai — começou:
— Gosto de tocar, mas não sou concertista; sou compositor. Queria poder compor mais, mas não tenho acesso à tecnologia que já permite que deficientes visuais, como eu, desenvolvam suas composições.
A música é uma forma de os anjos se fazerem sentir por quem não os percebe de outras maneiras. Como os anjos são arautos divinos, expressam-se em acordes; são, portanto, a fala de Deus.
Dei-me conta da cena angelical que assistia. Tratei de dizer que, também — com as devidas cautelas e proporções — era músico, e que tinha um filho maestro, concluindo um doutorado em Lisboa (Ely Janoville).
A conversa se abriu ainda mais.
O jovem completou:
— Ultimamente, persigo, com muito treino, um recorde no atletismo paralímpico. Quero ir às próximas Olimpíadas.
Não nego o espanto nem a provocação a que a cena me convidava. A razão tinha a ver com o tal milagre. Eu precisava ocupar o espaço que a ordem — ou o próprio caos — me exigia.
Pensei em ligar para alguns amigos que pudessem interferir, para que aqueles anjos “acordados” — de “acordes sonhantes” — se espalhassem naquele Natal, naquele ambiente.
O pai, velho marinheiro que se serve de caminho ao filho, contou mais: o jovem já participara de apresentações no Fantástico e tocara com o grande maestro João Carlos Martins. Mostrou suas redes sociais (@marquinhos_da_flauta) e falou das dificuldades que enfrenta, especialmente a de ter acesso a máquinas que permitam a composição por deficientes visuais.
Enquanto conversávamos, tratei de localizar @ipmoura, meu conterrâneo Iramirton Gregório, para pensarmos o que fazer. As possibilidades do universo trouxeram-no ao shopping. Sim, ele estava lá e acabara de passar pelo café. Pediu-me apenas alguns minutos para retornar.
Quando chegou, tratamos do assunto e marcou-se um novo encontro com a equipe da TV Arapuan, que resultou nesta reportagem, cujo vídeo segue no link anexo.
Posso até estar exagerando, mas não consigo explicar os fatos fora das tramas sonoras angelicais aceitas por todos nós naquele encontro. Sei que coincidências são milagres que ainda não se repetiram, mas a frase da epígrafe diz tudo de tudo.
Era Natal.
Deus pedia guarida em nossos afazeres.
Fizemos.
Deus há.
PS Imagino que na escola de música da UFPB, aqui na Paraíba, tenha essa máquina a que se refere o pianista. Vou consultar os professores @formigateinha e @aceitonadotrombone.