‘Democracia não é sobre poder, mas sobre direitos e garantias individuais.
República não é sobre publicidade, mas sobre acessibilidade e disponibilidade do poder ao povo.
Portanto, numa Democracia Republicana, só há um poder: o povo! A esse, a exclusividade dos excessos.’
– Irapuan Sobral Filho
Foi numa tarde de corredores longos e cafés amargos que a ideia surgiu. Eu assessorava o Senador Ronaldo Cunha Lima quando, numa reunião da Comissão do Código Civil, recebi o ministro Moreira Alves para uma palestra. A conversa, no gabinete – como é comum nos bastidores -, descambou para o que nos inquietava: o caos da jurisprudência e uma possível proposta de emenda à Constituição para estabelecer o efeito vinculante.
Ele ouviu com atenção, ponderou com elegância e, ao final, comentou, com as medidas de um juiz:
– É uma ideia.
Ao ser questionado, referiu-se à proposta durante a palestra, e ainda disse:
‘Fui monitor na Faculdade Nacional e o último Catedrático das Arcadas; fui advogado do Banco do Brasil; o mais novo Procurador-Geral da República (até então); ministro do STF — razão pela qual fui presidente do TSE e do STF. Como pouquíssimos brasileiros na história, abri e instalei, também como presidente, uma Assembleia Nacional Constituinte. Mas nunca consegui ser o que certas pessoas pensam que são quando podem assinar uma ordem.’
A ideia da PEC era: vincular as decisões das instâncias inferiores às do Supremo Tribunal Federal. Um jeito de evitar que juízes desconsiderassem a autoridade jurisprudencial do STF. Tomei o gesto como sinal verde e redigi o texto. Depois, levei-o ao então presidente do Supremo, ministro Sepúlveda Pertence, que o considerou relevante.
A guerra começou no plenário, envolvendo advogados, juízes e doutrinadores, que auxiliavam os senadores. Havia os que entendiam no efeito vinculante o gancho para a harmonização das decisões, pela isonomia – um antídoto à balança interpretativa, que prejudicava os jurisdicionados com esperanças não realizáveis e congestionava os tribunais com recursos infindáveis, ocupando tempo de temas relevantes.
As críticas eram previsíveis: engessamento do Direito, supremacia do STF sobre o povo, inércia diante dos fatos, apagão de realidade. Eu, jovem e convicto, tinha réplica pronta para cada ponto.
O texto passou – mais de uma vez, inclusive. A redação final, fruto de negociações com a Câmara, foi incorporada à Constituição – e hoje dorme lá, como uma espécie de cláusula pétrea ou pedra no sapato, dependendo de quem lê.
Durante os debates paralelos aos políticos, houve um momento – talvez o único – que me fez hesitar. Veio da então Advogada-Geral do Senado, Dra. Herzeleide, mulher firme, serena, experiente.
– Dr. Irapuan – disse-me, com olhos de quem vê longe -, é muito poder para uma única instituição… e logo uma que se acha sagrada.
Eu, com a convicção dos que ainda não foram traídos pela própria vitória, respondi:
– Mas Moreira Alves não cometeria abusos!
Ela baixou a voz, mas cravou o punhal:
– Você está mandando para Moreira Alves… mas não sabe quem vai receber.
A frase ficou como uma previsão que se escuta e só se entende o vaticínio dela quando a História já passou por cima da própria pena.
Hoje, ao ver decisões monocráticas reescrevendo políticas públicas, ministros decidindo a pauta do país e o Judiciário confundido com oráculo ou panaceia, só me resta admitir:
Ela estava certa.
Hoje eu penso ao contrário: é preciso que as decisões do STF tenham a realidade nacional – só possível em instâncias inferiores.
Mesmo sem poder dizê-la pessoalmente, remeto um ‘meaculpa’ para algum momento da eternidade:
– Perdoe-me, Dra. Herzeleide!
Por Irapuan Sobral