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Forró em Iracema

Cultura é sinestesia: a forma de sentir os modos do mundo.

Irapuan Sobral, Dicionário de Exceções

É normal que o período das festas juninas reacenda o debate sobre a música tradicional e a cultura popular, especialmente a do Nordeste. Mas esse debate, muitas vezes, se trava entre trincheiras: de um lado, os defensores do ‘nacional puro’; de outro, os que reconhecem o hibridismo como força vital.

Entre as trincheiras está o terreiro do forró, onde o povo dança desinteressado e imune à disputa. Dança como quem suspende, por alguns compassos, o peso civilizatório. A festa, nesse instante, não é oposição à repressão – é seu escape legítimo. É onde a pulsão se sublima sem culpa, juntando diferenças aos pares.

A cultura, como o caráter pessoal, só existe em relação às outras. Só há identidade perante a diferença – como só há rosto diante de outro rosto, mesmo que no espelho de reflexos recíprocos. Mas a cultura também é construção do recalque: ela exige que se renuncie ao prazer imediato, em troca da convivência possível.

Sempre que ouço esses argumentos de defesa da ‘autenticidade’, lembro de Irapuan, aquele de Iracema, personagem que me deu o nome. Vejo nele dois rostos: o guerreiro que ama Iracema, a mulher, e o defensor da sua cultura, a nação, contra a chegada estrangeira.

Mas proponho outra chave: Iracema não é apenas mulher;é a terra. Talvez até o próprio nome diga isso – como uma anti-Eva. Ao revés da narrativa bíblica, Iracema é a origem, o chão, o ventre. E Irapuan é quem dela nasce – e lhe quer a posse; como nasceu Moacir.

Irapuan é acometido de um agravado complexo de Édipo: deseja a terra, tenta possuí-la, lutar por ela – mas é vencido, não por um homem, mas pelo tempo e pela história. Ele cede, e ao ceder renasce com outro nome: Moacir. O nome da dor. O nome do primeiro mestiço. O nome do que continua. Moacir é o filho da renúncia.Produto do recalque trágico e da aceitação simbólica.Nele, a dor não desaparece – mas vira linguagem, vira cultura, vira futuro.

Nossa língua nasceu do latim vulgar, que por sua vez carrega raízes indo-europeias, como o sânscrito. Mas o português que se fala hoje – ou talvez o brasileiro – já não é mais aquele das cartilhas; está recheado de palavras africanas, nativas e, literalmente, imigrantes.

Não dá pra negar a influência da língua inglesa, depois de anos sob o predomínio econômico e cultural anglo-americano – da Grã-Bretanha à América. É por isso que tantos termos entram no nosso vocabulário sem pedir licença: boyzinha, hot-dog, hype, crush, delivery, flertar.

Quando ouço alguém dizer ‘boyzinha’, meu riso é sincero.É diferente de quando ouço ‘todes’. Porque ‘todes’ vem da militância, da academia, da pauta organizada. ‘Boyzinha’vem da rua, do desejo, da ausência de gênero. Um é superego social. O outro é id em festa. E a língua precisa dos dois: da norma que pensa e da boca que cria.

A cultura é uma renúncia, mas pode ser uma renúncia criadora. A árvore cultural é feita de enxertos: desejos cortados que rebrotam em outras formas. A cultura forte é aquela que se dobra ao tempo sem se quebrar. É árvore frondosa, onde as pulsões, mesmo domadas, ganham sombra para descansar.

Quando usam Luiz Gonzaga como símbolo de purezacultural nordestina, erram. Gonzaga não cantava um único modo, mas uma mistura viva do que ouviu pelo paísinteiro, por onde andou e viveu. E o que ele fez de mais revolucionário foi libertar a música nordestina da triagem da Casa Grande – aquela que impunha aos ouvidos do povo os gostos da elite. Hoje, ele a libertaria dos intelectuais e dos puristas. Antes, o que o povo ouvia vinha dos rádios dos patrões. Gonzaga voltou do mundo com a mala cheia de sons e disse ao sertão:

– Vocês são lindos.

Mas ele fez mais: abriu espaço para a pluralidade interna da própria música nordestina. Despertou variações locais, estilos novos e liberdades criativas que estavam represadas. Depois de Gonzaga, surgiram nomes como Jackson do Pandeiro, Marinês, Trio Nordestino, Genival Lacerda, João Gonçalves, Zé Calixto, Abdias, Zé Paraíba de Jatobá – e cada um carregava uma sonoridade diferente, como brotos distintos da mesma raiz liberta.

E a influência de Gonzaga foi além do forró. Chegou à Tropicália, nos anos 60, que reinventou o Brasil sonoro.Chegou ao Pessoal do Ceará, ao Movimento Armorial, ao Manguebeat. Chegou a Alceu Valença, Elba Ramalho, Fagner, Belchior, Ednardo, Vital Farias, Livardo Alves, Zé Ramalho. A música brasileira nunca mais voltou ao mesmo eixo depois dele.

Na canção “A Dança da Moda”, Gonzaga antecipa o debate:

‘No Rio tá tudo mudado

Nas noites de São João

Em vez de polca e rancheira

O povo só dança e só pede o baião.’

Ele não vê isso como perda, mas como sinal: o baião venceu pelo afeto. A cultura se move porque toca – e porque permite ser tocada.

Demetrinho e eu lançamos um disco de estúdio chamado Jatobá, Estrelas da Paraíba, uma espécie de memória da juventude. O disco já toca em quase 20 países. Isso não trai o sertão – isso sublima o sertão. É um sertão que vai e outro que volta.

Os retirantes que estão voltando ao sertão – voltam com desejos transformados. O recalque da infância vira estética na maturidade. Voltam com saudade e wi-fi – e isso é psicanálise cultural em curso.

Toda cultura retorna e retorna diferente. Aquela lenda do Yuan, da China, a que se refere Borges, no conto dos Animais dos Espelhos, parece que trata da cultura sendo reinventada por si mesma, mas nunca no mesmo ponto.Ela volta transformada: como sintoma, como criação, como espiral.

Outro dia, eu soube que o Riachão de Sá Mariinha, lá no Barro, do Ceará, estava sendo comprado pelas pessoas que voltam do Sul, para onde foram sobreviver há muito tempo. Passaram a vida confinados em guetos e preservaram a cultura sertaneja em comunhão com a cultura local. Estão trazendo outra cultura.

O forró, o rock, o fado – todos nasceram de cruzamentos, de sofrimentos, de pulsões desviadas pela linguagem e pela música. O retorno não é regressão. É sublimação que sobe um degrau.

Sabemos mais do Oriente porque Alexandre foi lá, ainda que antes dele houvesse uma relação sócio-econômica – e porque o Ocidente precisou do Outro para se ver.

Sabemos mais da Grécia porque os orientais a preservaram. Toda cultura precisa se ver nos olhos do outro para se perceber. Toda cultura carrega um recalque -mas também uma abertura. Toda cultura é um espelho do que ela desejava ser e não pôde.

No meu último disco (AÍ tem Forró), fiz uma música, sobre um poema meu, com ajuda da IA – e a reescrevi em inglês.

Chama-se: ‘Repto’.

You’ve been with me since childhood

and I’ve kept your image in my mind;

you with a girl’s face

managed to blind me to this punishment

that time has transformed into a shelter

of the love I’ve kept for this purpose,

to always affirm that this is

what I have to say

that now I’ll only give myself to you

if you give it all back to me.

No original era:

Você desde a infância anda comigo

e eu guardei sua imagem na retina;

você com um rosto de menina

conseguiu me cegar neste castigo,

que o tempo transformou em um abrigo

do amor que guardei para este fim,

para sempre afirmar que é assim

o que tenho pra falar e pra dizer:

que agora eu só me entrego a você

se você me devolver todinho a mim.

Está cantada em inglês, mas o sangue do verso é baião, é forró. O sotaque é estrangeiro, mas o corpo da canção é do sertão.

Não é traição – é sublimação. ‘Repto’ é a prova de que a pulsão, quando desviada como engenho (potência), pode virar arte, música, poesia – até algoritmo. Porque a cultura só é viva quando sublima o instinto sem apagar o desejo.

Li em algum lugar que a música Tambourine Man, de Bob Dylan, teria sido inspirada em Jackson do Pandeiro. Assunto típico ao adorno da lenda do forró. Porque aprópria cultura se faz assim.

Nem o nome do forró escapa da dúvida. Há quem afirme, como reforço político, que vem de ‘Nego forro’, dança da alegria da libertação do cativeiro; como dizem, da mesma forma, com as minhas objeções, que vem de ‘For all’, os bailes formados para os peões das obras de ferrovias no sertão do Nordeste. Ambos, entretanto, falam de libertação.

Alguns linguistas defendem que a palavra vem de Forrobodó (termo de origem banto, cujo significado pode ser festa, farra e confusão) ou, com menos apoioacadêmico, do francês Forain ou Foraine (Feira, ambulante).

Do mesmo mal – ou do mesmo bem, porque esse conflito é yogue, sofre a poética nordestina. Os repentistas cobram-se e cobram uma ortodoxia que eles mesmos quebram nos diversos estilos que criam. A ‘Cantoria’ mesmo presa a uma certa tradição tende a explodir em modos diferentes à revelia dos cantadores e dos contendores da cultura. 

Aliás, os cantadores, que são poetas no sentido puro(naturalmente, bruto) da expressão, acabam sendo tratados como se não fossem de verdade, e são entregues a uma categoria entre o cantor e o poeta, para não serem nenhum dos dois, nos arquivos de admiradores conceituais; ‘um ente’ sublime codificado ao modo caricato como ‘um entre’- na dúvida. Na verdade, eles são os herdeirosnaturais dos Rapsodos e dos Griôs. Nos arquivos, nos festivais, nas curadorias, são tratados como peça folclórica – não como vanguarda verbal, como de fato são. Cada repente é mais que rima: é pulsão organizada em beleza súbita. Se a poesia clássica busca a eternidade, a do cantador persegue esse instante perfeito.

Tomados em suas devidas dimensões mitológicas: Pinto de Monteiro e Orlando Tejo representam essa ‘absoluta imperfeição sublime’.

Como o brilho da luz carrega dentro de si todas as cores, assim também é a cultura: não é uma, mas todas. Não é pura, mas inteira. Na disputa entre o branco e o preto,estão as cores que nascem no preto, mas se revelam no branco. Não é fácil aos tons de cinza explicarem ou se explicarem.

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