Para Robert A. Heinlein, pelo aviso.
Não existe almoço, nem isca, grátis. Há sempre um anzol nas linhas que oferecem facilidades.
Era a era pré-apocalíptica quando encontraram estes escritos em um corpo preservado sob estercos de um grande estábulo, em cujo norte uma floresta resistia calmamente. Estudiosos acreditam que se tratava de uma limpeza que ocorreu naquela parte do planeta há alguns milhares de anos, mas que, apesar dos avisos, a sujeira sempre se renovava. Como o texto foi encontrado em diversos corpos, supõe-se que serviu como manual da cidadania.
O texto é direto. Não exige esforço. Está em primeira pessoa, como se a dignidade fosse cobrança e a responsabilidade, forma de convivência.
À leitura.
Eu nunca acreditei em salvadores. Talvez porque, desde cedo, aprendi que quem aparece com uma falsa mão estendida quer tua alma, não teu aperto. Ou talvez porque, quando a sujeira começa a feder, ninguém desce do cavalo branco para limpá-la — e eu já tinha visto esterco demais para romantizar cavalos.
Tudo começou na madrugada em que acordei com uma sensação estranha: alguém estava pensando por mim. Não era voz. Não era delírio. Era como se o meu impulso — o mais íntimo — tivesse sido ensaiado por outro. O ar não era meu. O gesto não era meu. O pensamento tinha gosto de metal, como se tivesse sido feito de cálculo, não de lembrança. Naquela hora, não soube explicar. Hoje sei: perdi a confiança em mim antes de perder a confiança no mundo.
Levantei. O espelho não ajudou. Não mostrava parasita, nem sombra, nem tomada. Só mostrava o velho problema humano: a tentação de obedecer. Obedecer é fácil. É morno. A liberdade é que é áspera — e corta na mão de quem a segura.
Na rua, a cidade parecia limpa demais. Homens caminhavam com exatidão. Mulheres sorriam com compostura de estátuas. Havia um silêncio domesticado nas calçadas, desses que lembram os currais de Áugias: sujeira escondida sob camadas de rotina.
Foi quando percebi que a angústia não era só minha. Havia algo dominando a cidade — e não era só governo, nem somente ideologia: era o excesso de governo. Quando o Estado cresce demais, ele se infiltra nos gestos, nas rotinas, nas culpas. A desistência vem depois, como febre inevitável. Desistir cansa menos que lutar. E quando a desistência se espalha, ela agarra as costas como parasita antigo. Não precisa de alienígenas. Basta gente que já não quer pensar por si — porque o Estado pensa por ela.
À época da pandemia, a cidadania descobriu quem lhe era essencial. Oxalá algum governo dedique-se com exclusividade — não excludente, por óbvio — à educação, à saúde e à segurança, até que não reste uma única alma precisando de hospitais, escolas e paz.
Uma velha piada de pescador explica o caso: tubarão não morde piaba. Grande predador só vive onde há corpo gordo para morder. Quanto menos Estado, mais esses tubarões morrem de inanição.
Sempre achei que a corrupção fosse doença de gabinete, vírus de terno, epidemia de ministério. Ilusão. A corrupção é mais democrática do que o voto: percorre o povo inteiro como febre. Quando os que mandam perdem a vergonha, os que obedecem perdem o pudor.
Passei a notar isso no mercado, no táxi, na fila do banco. Ninguém mais dizia a verdade — dizia o possível. E quando a verdade se torna opção, o país já virou curral.
Foi então que lembrei de Hércules. Não do semideus — do homem. Do sujeito cansado, sujo, ferido, com dor nas costas e paciência curta, mas que recebeu a ordem mais absurda do mundo: “Limpe o impossível.” E ele não limpou: desviou um rio.
Fiquei com isso grudado em mim como parasita silencioso: qual é o meu rio e onde estão os diques?
Olhando o país, percebi: o rio existe — chama-se eleição. Corre a cada dois anos, desce forte, arrasta tudo. Mas alguém desviou esse rio para irrigar o próprio curral. No Brasil, a renovação é endógena — política doméstica, familiar, cozida nas mesmas panelas, servida nas mesmas mesas. É uma República sem povo vestindo uma monarquia sem nobreza. Em vez de levar a sujeira embora, o rio a revolve, a renova, a batiza, como água quente alimentando infecção.
A minha geração aprendeu a votar com nojo e votar com raiva, mas não aprendeu a votar com consciência. Sempre vota contra. Por isso os taumaturgos prosperam: falam sempre mal, como se toda ideia fosse oposição — não proposta. E sem consciência, o rio é só inundação.
Acordei um dia desses comuns, em que a cidade parece cenário de novela policial. A sensação de parasita ainda me roçava o pensar. E então entendi: não há bicho grudado em mim. Sou eu que estou grudado nos hábitos do país. Dessa vez, não fugi do espelho. Olhei bem.
— E se o desvio for moral e não político?
— E se o rio começar em mim?
Onde faltam princípios, faltam conceitos. E onde faltam conceitos, as coisas só existem para alguns — os que conciliam o que elas são com aquilo que lhes convém.
Pensei nisso enquanto via um vendedor passar troco errado de propósito e um cliente aceitar sem culpa. Ali estava o curral. Ali estava Áugias. Ali estava o estrume vivo da nação. Pensei nisso quando os corruptos começaram a ser comparados, e à corrupção atribuir-se um valor curricular.
Entendi o resto num estalo seco: não existe corrupção sem complacência. E não existe país sem espelho. O herói não nasce grande: nasce envergonhado.
E foi assim, com essa vergonha antiga latejando, que percebi: Hércules não sou eu sozinho — sou eu quando recuso o atalho. Sou eu quando digo “não”.
E talvez o país inteiro pudesse dizer isso ao mesmo tempo. Não sei em que momento decidi que bastava. Essas decisões nunca vêm com clarim: chegam como respiração curta, como silêncio que te aperta a clavícula.
Foi quando um amigo me disse, rindo:
— “No Brasil, ou você entra no jogo ou vira otário… ou Mané.”
E o Mané sempre perde.
Aquilo caiu em mim como pedra no poço. Era essa a vitória dos parasitas: não pensar por nós, mas nos fazer desistir de ser nós. Percebi que ninguém dominava minha mente. Eu é que a estava terceirizando.
Naquela noite, saí caminhando sem destino, como quem procura falha no próprio casco. E entendi, enfim, o 7º Trabalho: a limpeza não vem da força, mas do desvio.
Meu desvio foi pequeno, quase ridículo: uma recusa. Recusei uma facilidade. Recusei uma propina cordial, embrulhada em sorriso de compadre. Recusei o atalho. Recusei o ganho fácil. Recusei o favor ilícito que ninguém considera ilícito. E recusei votar em candidatos de vias urinárias.
E descobri uma coisa simples: o combate à corrupção nãoprecisa que você diga “sim”. Precisa apenas que você não diga “não”. Dizer “não” foi meu desvio. Uma pá d’água na direção contrária.
E, quando fiz isso, pela primeira vez em muitos anos, me senti limpo. Não puro — limpo. Puro ninguém é. Mas limpo é possível.
Caminhei de volta para casa, sabendo que o país não ia mudar por minha causa. Mas algo tinha mudado em mim: o parasita foi arrancado. E não era o de Heinlein — era o do hábito.
No espelho, pela primeira vez, não vi vergonha no meu rosto. Vi Hércules. Não o semideus — o homem. O que limpa o impossível desviando um fio d’água.
E compreendi: o rio é a consciência. A eleição é só o leito. Quem decide a direção é o indivíduo. O país só muda quando cada um decide que não aceita mais viver em curral. E que a limpeza, embora demorada, começa com uma recusa pequena, mas verdadeira.
Termino este relato assim: não com esperança, nem com pessimismo — mas com dignidade.
O desvio começou. Que outros façam o seu.
PS. Quanto ao 13º dígito, devo avisar que o escândalo do INSS e dos empréstimos consignados é a gota d’água que faltava para a corrupção passar abertamente do trilhão. Enquanto isso, a frase do contato social permanece a mesma: — Você não é pobre. Você é apenas honesto!
Ah! E o desvio é para Áugias — porque não é para o vermelho.
