Wanderlea
Essa mulher de face escaveirada,
Que vês tremendo em ânsias de fadiga,
Estendendo a quem passa a mão mirrada,
Foi meretriz antes de ser mendiga.
Antônio Tomaz, Verso e Reverso
Eu a via cruzando a praça da feira, do Correio para o Teatro, talvez mirando um último cliente em Araújo.
À noite, a feira eram os esqueletos das tarimbas, sem os tecidos à venda e as vestimentas que formavam as bancas durante o dia. Naqueles esqueletos, os menos de menos — de todos nós — trocavam as carnes, se não fosse possível ocupar, por não mais de 30 minutos, as baias alugadas no alto das lojas na praça do comando da polícia.
Muitos subiam nas bancas e eram flagrados pela guarda. O exagero prejudicava a todos, porque, vez por outra, havia batidas, e o crime de atentado ao pudor era exibido à moral comum. Geralmente, Wanderlea estava no protagonismo da cena.
Ela nunca se incomodou com o local, desde que ainda lhe faltassem o bastante à sobrevivência do dia.
Era de pouca conversa. Quando alguém esticava o papo e a rama puxava a sua vida, ela tinha uma resposta em um cartão labial:
— Vai pagar as minhas contas?
O silêncio negativo era despertado por mais alguns movimentos, e ela dava por terminado o ato.
As dificuldades diurnas, ela as resolvia visitando a Casa do Estudante ou as repúblicas que formavam a federação estudantil na geografia antropológica do centro da cidade.
Nessas horas, a turma se resolvia com ela, porque era mais barato — e mais conveniente — que o cinema e as revistas do sebo nas proximidades do Flôr da Paraíba. A masturbação estava quase impedida, salvo situações especiais, porque as camas eram muito próximas, e o banheiro era coletivo — sem portas.
O risco de uma gonorreia era grande, mas havia um estoque de Benzetacil nas encomendas de casa. Vinha junto com as merendas.
Na primeira vez que nos vimos, vimo-nos em plenitude, sem tempo — até no futuro. Ela riu, fortemente, e me chamou de encabulado e bichinho. Mas me atendeu. Eu tinha 14 anos — e uma estatura de uns 10.
Nas últimas, eu fui reconhecido. Numa delas, ela estava subindo as escadas do edifício Régis, quando morávamos por lá; depois de entregar serviço a alguém, ia à procura de outro, mas com o Sr. Joab, o guarda do prédio, no seu encalço.
— Esse velho… já tentei de tudo, mas ele não dá mais jeito. Aí, ele não me deixa mais trabalhar.
Na última, ela me fitou como se fosse um poema do padre Antônio Tomaz, que eu decorara na infância — Verso e Reverso. Já sem aquela correria e com ar mais de pedinte, ela se dirigiu a mim e disse:
— Doutor, me dê uma ajuda! Por Nossa Senhora.
Não tinha mais as roupas nem as cores que, no corpo, lhe emprestaram o nome pelo tempo da juventude — envelhecida nas aparências que lhe apressaram os anos.
Fui com ela ao mercado que havia próximo à farmácia Pe. Zé, na 1817, e fiz uma feira. Na saída, ela voltou o riso e falou:
— Ainda sois o mesmo, visse!?
Por Irapuan Sobral