A condição de ente político em tempo integral que está impregnada na personalidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não o proíbe de manifestar um lado humano, afetivo, desentranhado dos períodos em que, nos embates eleitorais, precisou ser o “Lulinha paz e amor” e não o metalúrgico zangado e brigão na defesa da classe trabalhadora, o João Ferramenteiro das árduas rodadas de negociações com patrões ou donos de empresas instaladas no ABC paulista e no entorno de inúmeros outros centros urbanos. Nas cartas que expede ao povo brasileiro, direto da cela da Superintendência Federal em Curitiba, não há qualquer menção de Lula, em tom nostálgico, à mulher Marisa, sua companheira na etapa mais aguda do seu crescimento político, que faleceu, em parte, em virtude da pressão sistemática exercida sobre o marido, já fora do poder, com aqueles processos envolvendo o tríplex do Guarujá e o sítio de Atibaia.
Numa entrevista que concedeu a colaboradores do lulopetismo para figurar em livro-reportagem sob o apelativo título de “A verdade vencerá”, Lula refere-se a Marisa por provocação dos entrevistadores, que buscavam extrair justamente a sua face humana, vulnerável a choro e a sentimentos exteriores de melancolia. E, na referência à companheira, situa Marisa como a grande vítima do suposto processo de linchamento de um ex-presidente da República. Mas a entrevista foi concedida antes de Lula ser preso. Todos se recordam que, em meio ao cerco policial para que ele se entregasse diante da ordem de prisão emitida pelo juiz Sérgio Moro, Lula entrincheirou-se não em casa, junto com filhos, noras e netos, mas na apertada sede de um sindicato. Tudo isto fazia parte da coreografia. Marisa foi encaixada no enredo por cálculo político quando Lula concordou em se entregar depois que fosse celebrada uma missa de evocação da memória da mulher. O púlpito virou tribuna política, no ensaio da saga da resistência que veio a compor, mais tarde, a narrativa do golpe e da perseguição vendida a incautos jornalistas do exterior e a organizações de direitos humanos extremamente sensíveis a qualquer boato de privação de liberdade.
Na narrativa adrede orquestrada pelo lulopetismo, o golpe é uma alusão ao impeachment da então presidente Dilma Rousseff, tratado por Lula e pelo PT como parte inseparável da conspiração para fazer vergar a classe trabalhadora. Na verdade, Dilma foi pilhada cometendo pedaladas fiscais e gastando mais do que havia em caixa no orçamento, num exemplo claríssimo de má gestão e até mesmo de improbidade administrativa. Lula e o PT, quando sentiram o poder escapar-lhe das mãos, combinaram a narrativa da vitimologia. Secundando o golpe adviria a perseguição cruenta ao líder máximo do operariado brasileiro, ou seja, o próprio Lula, na forma de condenação em juízo e ordem de prisão. Assim foi feito, na ótica do lulopetismo. Aliás, o próprio Lula sempre teve uma propensão a mártir, o que ficou caracterizado na repetida alusão ao suicídio de Getúlio Vargas e a mortes misteriosas de líderes populares como Juscelino Kubitscheck e João Goulart.
As cartas de Lula, rabiscadas em Curitiba e comboiadas por emissários de confiança para as mãos da mídia, tratam de tudo: da narrativa da prisão dele, da retaliação implacável ao PT e a petistas, episódios entremeados com apelos para o voto em Fernando Haddad, o novo poste de Lula, o candidato escalado para bater Jair Bolsonaro num suposto confronto ideológico, como quer fazer supor o ex-presidente. Sim, mas qual a razão de não haver uma linha sequer do viúvo Lula sobre a mulher guerreira que foi Marisa nem qualquer mensagem emotiva para os filhos que assistem a tudo sem nada entenderem? A respeito disso, não se fala dentro das quatro paredes do PT. É segredo de Estado, espécie de tabu, como se mantém o tabu relativo a qualquer comentário sobre o assassinato do petista Celso Daniel. Cabe indagar, como na música de Chico Buarque de Holanda: “O Que Será?/Que Será?/Que anda nas cabeças, anda nas bocas?!….
Nonato Guedes