Os olhos do menino pareciam encantados com aquele mundo de lama seca e rachada. O leito do Açude Velho ficou assim, parecendo um prato com rachaduras, capas secas de lama fechando o piso e pelas frestas os peixes que pulavam para fora procurando água.
Joana de Vigó acabara de encher a quinta lata com traíras e corrós enormes. Pelo menos de fome ela não morreria tão cedo. Bastava limpar os peixes, botar sal e estender ao sol. Teria mistura para todo o ano.
Tuta, o menino buchudo, não percebia o drama. Para ele tudo era festa, peixe com o pescoço de fora e o leito seco do Açude Velho transformado em palco de suas peraltices.
O rádio de Valdemar de Ferreirão, único meio de comunicação da cidade, transmitia ao vivo o discurso do deputado Alcides Carneiro. Discurso de protesto, denúncia calando fundo na alma do povo, mas que parecia não incomodar as oiças das autoridades:
“Senhor Presidente, Senhores deputados – Nesta hora, ao ocupar a tribuna para falar do sofrimento, para exprimir a revolta dos meus irmãos paraibanos, dos meus irmãos nordestinos, não vejo partido, nem chefe, nem correligionários, nem conveniências, nem compromissos; nesta hora, sou simplesmente representante de um povo que está morrendo de fome, de um povo que está em luta com um inimigo, indomável, um inimigo que ele não vê, a quem não pode combater, a quem não pode sequer odiar”.
“ Impossível imaginar-se mais terrível drama, mais atroz desespero. Mas a dura realidade é que os filhos da raça antiga dos valentes, aqueles que expulsaram invasores, que dilataram fronteiras, que desbravaram infernos, enchem, hoje, no Nordeste, as estradas sem fim, a carregar restos de corpos para um fim bem próximo”.
“Cadáveres sem conta pontilham já as estradas empoeiradas e mostram os dentes ao sol num derradeiro protesto; e não lhes dão sequer uma cova por piedade, pois os que morrem de fome e de sede pouco têm o que enterrar, mesmo porque o coveiro piedoso é menos apressado do que o lobo voraz.”
“São homens que assim se extinguem tão cedo, porque nem tarde se lembraram deles; são crianças que, mal começam a viver, começam a morrer; velhos que, ao fim de tudo, um destino feroz lhes nega o último consolo: o consolo de morrer de velho.”
“Senhor Presidente, não merece o nome de brasileiro, nem a qualidade de cristão, quem pensar que há nesse quadro sinistro exagero ou fantasia.”
“Podeis crer, Senhores Deputados, como se estivésseis ouvindo os gemidos dos moribundos e os gritos dos desesperados. Crede que desgraçadamente nesta hora se está estinguindo, na pior das mortes, o cerne da nacionalidade”.
“Senhores Deputados: já é tempo de os nordestinos deixarem de pedir esmolas pelo amor de Deus! Então, o nosso amor não chega para arrancar de tanto opróbio e de tanta humilhação, para quebrar-lhes as cadeias forjadas em cem anos de submissão e conformismo? Se não chega, Senhores Deputados, então, somos nós, os seus representantes, que devemos ser condenados a morrer de fome – não eles!”