Um exercício de abdução sobre o desejo e a memória
Duvidava de si — não com o espanto de ver-se mudado, mas com a perplexidade de quem se vê repetido. Foi assim que começou a procurá-la. Nas ruas, nas redes sociais, nos arquivos de rostos e biografias falsificadas, nas vitrines discretas de sites pagos. No início, buscava a sanidade. No fim, sua própria sexualidade. Ou o que dela restava — algo como uma cicatriz lembrada em sonho.
O ponto de origem era remoto: a universidade. Ali, no mesmo curso, encontraram-se. Ela, já experimentada nos labirintos do corpo. Ele, um noviço à beira de um sacramento pagão.
Para ela, ele teria sido o que chamavam de “o primeiro” — e, como todo primeiro, um corpo inábil, mas pleno de sentido: virgem, sob todos os signos. Ela o domou com paciência meticulosa, como quem decifra um idioma extinto. Do beijo inaugural à entrega final, construiu nele uma geografia nova.
Depois, a vida, pensava ele, era sexo e alimentação. Freud confirmaria.
Mas foi no dia seguinte que se revelou o abismo. No corredor da faculdade, ela passou por ele com o gesto leve de quem reconhece um rosto sem atribuí-lo a uma história.Um aceno, um “oi” sem carga semântica. Ali, compreendeu: Não fora amado. Nem odiado. Fora apenas utilizado — um exercício de corpo, talvez. E essa compreensão, embora simples, jamais se dissolveu.
As colegas pareciam espectadoras da cena havida. Por um longo período sentia-se atravessado por olhares capciosos.Nunca soube o que, de fato, fora contado. Mas a sensação de ser um relato em terceira pessoa — anedótico, quase clínico — nunca o abandonou.
Os anos se seguiram como páginas repetidas de um mesmo capítulo. Em tardes burocráticas, onde o tempo é dissolvido entre traumas, vasculhava sites com a insistência dos condenados. Não buscava pornografia. Buscava uma confirmação estética da memória.Acompanhava a biografia dela com o escrutínio de um suplente do elenco. Mas nunca teve direito aos endereços.Estava restrito às fofocas de colegas, que detalhavam a pele dela. Também contavam a mudança social repentina e algumas fotos solitárias nas imagens – porém com supostos fotógrafos forçados ao anonimato.
Não havia outras mulheres e ele não se imaginavacompletar-se com homens. Era a dúvida.
Até que a viu à venda. Ou acreditou ver. A fotografia mostrava uma mulher que não precisava mais de nome. O corpo mudara — como mudam os rostos nos retratos envelhecidos. Mas a unha… A unha permanecia.Vermelha. Curva. Com um desenho que não era moda, mas cifra. Uma marca que, logicamente, deveria ter sido esquecida, mas não fora. E isso bastava. Unhas são impermanências. Uma dela tinha uma vitalidade – somente aos seus olhos. Era um ponto que lhe chamava a atenção, na vizinhança da carteira da sala de aula.
Ela escolhera um pseudônimo que revelava um anagrama do seu próprio nome completado com o signo zodiacal. Por preservar um longo acervo dela, com sérias dificuldades de atualização, naquele ponto, ele não se questionou: Era Ela.
Cadastrou-se. Criou um perfil falso: um executivo em trânsito, discreto e exigente. Era um papel estúpido, mas necessário. Selecionou o programa mais caro, ao custo de alguns meses de trabalho. Não por vaidade — por fé. A verdade, supunha, custava caro. Pagou metade. Prometeu a si mesmo entregar o resto em mãos — junto com uma senha. Uma frase literária que ela repetia nos tempos de aula: “Todo reencontro é um erro de tradução do tempo.”
Mas antes da data marcada, a insegurança ocupou o lugar do desejo. Queria tê-la, mas, também, desmascará-la. Queria o prazer, mas, também, uma forma de justiça — embora ignorasse a culpa que cobrava. No pensamento abdutivo, o flagrante é a confirmação. Era isso o que buscava: não um corpo, mas a prova de que sua dedução tinha forma
Foi então que recorreu a um colega antigo, espécie de arquivista vivo da turma. Sabia de nascimentos, divórcios, empregos, doenças – e negócios. Soube, portanto, o que ele precisava saber: o telefone verdadeiro dela. Ligou. Ela atendeu com voz suave e com uma certa ironia que esboçava não o reconhecer, mas aceitou a conversa, para uma data e horário que ele propôs, próximo à outra data que tinha comprado ao reencontro. Contornando o que parecia conflito de agenda, ela alegou um trabalho de campo. Talvez, à noite, permitia-se um café rápido “Ad memoriam”.
Ele sugeriu o local: um shopping. O mesmo onde a encontraria, algumas horas depois, como cliente. Ela chegou. Vestia-se com discrição. Não ostentava nada além da própria contenção. Ela vinha cumprir a agenda. Ele já não sabia o que estava cumprindo.
Cancelou a sessão no site, alegando imprevisto. Pediu prorrogação. Conseguiu. Enviou mensagem:
— Liberado mais cedo. Café agora funciona?
Ela respondeu:
— Funciona.
Sentaram-se frente a frente. Ela pediu um suco, disse que tinha pouco tempo. Reencontrar o amigo da faculdade era um prazer, claro. Conversaram por vinte minutos. Ela fingia lembrar. Ele fingia esquecer.
Conservada na beleza e nos cuidados, ela era, para ele, umálbum de fotografias. Perdido nas páginas, ele tentava fechar o álbum. Mas o diálogo criava um universo submetido às forças do desejo e da vingança.
Então, ao mesmo tempo, consultaram os celulares. Ela recebeu a mensagem com as instruções para o programa.Ele, a confirmação do novo horário. Demoraram um segundo a mais olhando as telas. Depois se olharam. Não com surpresa. Mas com a lucidez que antecede o silêncio.
Ela entendeu. Ele entendeu que ela entendera.
Não houve pergunta. Não houve gesto. Mas algo, naquele instante, se fechou com perfeição. Ele pensou — como se narrasse para si mesmo:
“Ambos foram informados de um mesmo encontro, por canais distintos. Como se o destino fosse uma máquina lógica, quando é apenas a incapacidade de resistência da vida.”
O suco chegou. Ela bebeu com leveza. Ele observou os dedos dela. A unha — ainda vermelha, ainda intacta.Pensou que talvez aquela unha existisse apenas para ele.Como um símbolo que o tempo preserva por capricho.
Ela terminou. Levantou-se.
— Foi bom te ver — disse, com ternura medida.
— Foi — respondeu ele.
E partiram por caminhos opostos. Não sabiam, ou talvez soubessem, que aquele encontro encerrava não um ciclo de desejo, uma gestalt, mas um enigma resolvido. Sem orgasmo.
Sem vingança. Sem a tradução do tempo. Apenas uma dedução – ou uma abdução. Um anagrama de um passado que, invertido, ainda escrevia o nome dela.
