Nos bancos escolares nos foi ensinado que uma princesa aboliu a escravidão no Brasil, nas provas nos cobravam a data e o nome da lei, não mais que isso era pedido e o assunto se encerrava ali. Fora da escola víamos a escravidão servir de enredo de novelas de televisão, a Escrava Isaura, baseada na obra literária de Bernardo Guimarães, fez estrondoso sucesso na década de 70, mostrando o drama de uma escravizada de cor branca que sofria com o assédio de um senhor truculento, mas que contava também com a defesa de um homem apaixonado e de todos que ansiavam por sua liberdade. Por ser branca, filha de um capataz com uma escravizada, Isaura tinha um tratamento diferente dos seus outros companheiros de infortúnio. O autor conhecedor da sociedade para quem escrevia, usou a cor de Isaura para humanizá-la, ao mesmo tempo em que, se valendo desse artifício, fazia uma critica à escravidão.
Na sociedade brasileira a escravidão deu a tônica do que somos como Nação, foram mais de 300 anos de trabalho compulsório de africanos na construção do Brasil, último país das Americas a extinguir a prática depois de sofrer pressões internacionais e internas através das lutas de negros e brancos que não aceitavam mais toda uma população de não cidadãos, de não consumidores, de “peças” que, por lei, pertenciam a um senhor que tinha quase o poder de vida e morte sobre os seus escravizados.
A escravidão não é, como sabemos, um problema só do Brasil ou de um determinado período histórico, existiu na Antiguidade, no chamado escravismo antigo, aparece em diversos trechos dos textos bíblicos, e ainda hoje existe sob diversas formas. No Brasil além da miséria, da falta de oportunidades, no abandono que foi legado aos escravizados com o fim da escravidão, esse processo deixou o racismo como sua marca. Somos, infelizmente, uma sociedade racista que precisa refletir sobre os modos como o racismo é operado.
A partir de dados do IBGE se observa que 73% da população que vive em estado de extrema pobreza é composta por pessoas negras; nas universidades 18% dos estudantes matriculados são negros, isso sendo reflexo das importantes políticas de afirmação, pois os números já foram bem menores. Na pós-graduação (mestrado e doutorado) apenas 2,7% são pretos, contra 82% de brancos.
A reflexão se deu a partir de uma palestra do jornalista Laurentino Gomes, que ocorreu na Academia Paraibana de Letras. O escritor falou de seus livros e de como fez as pesquisas para a escrita de sua última obra “Escravidão”, em três volumes que tratam do tema a partir do primeiro leilão de escravo em Portugal até a Lei Áurea e suas consequências.
Considerando uma de suas falas me pus a pensar sobre o tema com mais vagar, atentando para o próprio espaço da palestra, uma academia de letras majoritariamente branca. Laurentino falou sobre pouca representatividade de negros e negras nas posições de poder e levantou a possibilidade de que o Brasil precisa de mais uma abolição, o que ele chamou de segunda abolição. Uma abolição, que sendo diferente da primeira, pense em políticas públicas que contemplem a população negra e formem pessoas antirracistas. Só assim poderemos construir uma sociedade igualitária e uma pátria mãe para todos os seus filhos.
Essa necessidade da segunda abolição nos leva a refletir, também, sobre uma verdade que, lamentavelmente, continuamos testemunhando na contemporaneidade nacional: o trabalho escravo, que permanece longe de confinar-se. O racismo se reafirmando como instrumento da produção capitalista, contribuindo para que a dominação burguesa estabeleça as condições da formação social brasileira, explorando a mão-de-obra dos negros em situações análogas à escravidão. O capitalismo e o racismo se realimentando, herdado dos resquícios do modo de produção escravista colonial. É preciso que enfrentemos o desafio de que sejam formuladas estratégias capazes de romper com o reacionarismo incrustado nas instituições e promover a integração do negro em condições de igualdade na sociedade de classes. Essa sim será a “segunda abolição da escravidão” no Brasil.
Rui Leitão