O HOMEM QUE ROUBAVA HORAS
le não tinha nome. Ao menos que se soubesse, é claro. Não tinha casa.
Dizem que é porque ele não queria. Morava na rua, como um mendigo,
como um andarilho.
Nunca ninguém viu sua família: pai, mãe, irmãos, irmãs, primos, primas, tios,
tias, avô ou avó. Parece também que nunca se casara e jamais tivera filhos. Andava
sempre só, apenas seguido por um monte de cachorros, tão esquálidos quanto ele.
Esta era sua “família”. Vez ou outra aquele homem parava num jardim e todos os cães
se deitavam em sua volta como se fossem ouvir histórias. Dava até gosto de ver.
Nessas horas ele tirava os restos de comida que juntara das latas de lixo e
distribuía por todos eles. Era uma grande festa. Latidos de todos os tons e uivos
caninos ouvidos por toda parte.
E
Era um homem que não era bom nem mau. Nunca alguém havia dito que ele tinha
feito alguma maldade. No entanto, tinha gente que não gostava dele e de sua família.
Alguns diziam que ele era perigoso porque ficava andando todo sujo e
maltrapilho pelas ruas, levando doenças por causa dos cães. Tinha gente que dizia
que um homem assim colocava em risco a segurança das pessoas, porque ele era
desequilibrado. Alguns, de bom coração, achavam que alguém deveria levá-lo ao
asilo de velhinhos, onde poderia ser bem cuidado. A maioria, porém, não se
incomodava muito. Achava o velho inofensivo, vivendo uma vida que, se ele não a
havia escolhido, pode ter sido escolhido por ela.
Todas essas opiniões eram porque o homem tinha um estranho hábito: ele
roubava horas.
Como assim? Não se sabe direito. Ele roubava a pressa das pessoas.
Como a casa dele era a rua, qualquer rua, todas as ruas, ele ficava observando as
pessoas que por elas passavam. A maioria delas ficava muito sem jeito: umas ficavam
com medo, outras sem graça; umas não sabiam onde esconder o rosto, e outras saíam
correndo, segurando a bolsa. E era interessante porque o homem não fazia nada para
essas pessoas! Ele apenas ficava ali, parado, observando o jeito delas! As pessoas
ficavam, talvez, constrangidas ao serem observadas por uma outra que em nada era
igual a elas.
O homem não se importava com isso.
Certa vez, aquele homem descobriu um jeito de deixar as pessoas sem jeito. Ele
se aproximava de alguém que tinha relógio e perguntava as horas. A pessoa tentava
lhe responder, mas o homem já saía em disparada, gritando:
— Roubei mais uma hora, roubei mais outra hora.
O transeunte, sem saber o que dizer, continuava andando, balançando a cabeça
e sorrindo. E lá vinha o homem, gritando:
— Roubei sua hora, ganhei um sorriso!
E assim aquele homem passava os dias andando de rua em rua perseguido por
sua família de cães, que parecia ser a única que o compreendia. Era tão único o jeito
dele, que as pessoas se referiam a ele como o “ladrão de horas”. Assim, passou a fazer
parte do dia a dia das pessoas, que ao passarem na praça onde estavam o homem e
sua família, diminuíam o passo, andando lentamente como se passeassem, e traziam
alimentos, roupas de frio ou caixas para que todos se abrigassem.
Assim, aquela praça já não era mais o lugar de gente correndo, mas de pessoas
que se cumprimentavam, que se olhavam nos olhos, que se sentavam nos bancos
para contar suas vidas; de filhos que brincavam com os pais; de namorados que
faziam juras de amor. Todos os dias a praça ficava cheia de transeuntes não mais
preocupados em chegar a algum lugar, mas em estar ali, fazendo parte da família do
homem.
Isso aconteceu por muitos dias, chegou a alguns meses. A praça virou um
burburinho de alegria e felicidade. As pessoas estavam, realmente, voltadas para seu
bem-estar, e também preocupadas em não mais seguir escravas do relógio. Muitas
até esqueciam que tinham relógio e já não o usavam mais quando vinham para a
praça, porque aquele mendigo, ladrão de horas, havia lhes questionado o fato de
serem prisioneiras do tempo, de tornarem suas vidas vazias, sem razão, sem brilho.
E era isso que, de alguma forma, todos gostavam nele.
Mas chegou um dia em que o homem não apareceu. Também não apareceu sua
família de cães. Foi uma tristeza só quando as pessoas perceberam que estavam sós.
Todo mundo ficou consternado com a ausência daquela pessoa que lhes havia
ensinado um novo jeito de olhar para a praça, para sua casa, para sua família, para o
tempo, para seu vizinho. Várias pessoas falaram sobre ele. Umas se emocionaram,
outras se desesperaram. Alguém propôs uma oração, outro quis fazer uma estátua
em homenagem ao homem. Um casal suspirou e uma criança soluçou no colo da mãe.
Era uma tristeza medonha, que não dava gosto de ver. Mas virou uma tristeza de
nada quando alguém lá atrás gritou:
— Roubei suas horas e ganhei seus sorrisos!
Todos se voltaram imediatamente para o local de onde vinha o grito e viram o
velho homem maltrapilho sobre um banco da praça. Sob seu olhar tinha sua família.
Eles estavam mais felizes que o normal. Traziam um brilho nos olhos de quem sabe
ser feliz. A praça estava cheia quando o homem falou:
— Eu roubo as horas para lhes dar tempo.
Tempo de aprender a usar o tempo.
Quem tem hora não tem tempo: tempo de olhar o tempo.
Será que vai chover?
Será que as flores já abriram?
Como será o arco-íris?
Qual a cor dos olhos dos meus amados?
Temos tempo para isso? Não!
Isso ocupa muitas horas.
E tocamos nossas vidas, olhando os relógios que marcam as horas de nossas
vidas, e esquecemos de marcar nossas vidas no tempo!
Quando o homem terminou de falar, notou que alguém soltava uma lágrima
acompanhada de muitos aplausos comovidos. Todo mundo sabia sobre o que o
homem estava falando, mesmo que tivesse quem não compreendesse direito o
sentido de suas palavras. O velho continuou a falar:
— Viva o tempo, não viva as horas. Só há um tempo: o agora. Tempo de chegar,
tempo de ir embora. Quem vive seu tempo, faz história.
O velho homem desceu do banco, chamou sua família e partiu falando:
— Roubei suas horas, ganhei suas lágrimas!
E não mais se ouviu falar dele… mas ninguém jamais o esqueceu.
Daniel Munduruku
O homem que roubava horas
São Paulo (SP) : Brinque-Book, 2013