O Papalagui nunca tem tempo
Embora não possa haver mais tempo do que o que
medeia do nascer ao pôr-do-sol, isso para o Papalagui nunca é o bastante.
O Papalagui nunca está contente com o tempo que lhe coube e censura o Grande Espírito por não lhe
ter dado mais. Chega mesmo a blasfemar contra Deus e a sua grande sabedoria, dividindo e subdividindo
cada novo dia que nasce, segundo um plano bastante preciso.
Corta-o como se cortaria em pedaços uma noz de coco mole com um cutelo.
As várias partes têm todas elas um nome: segundo, minuto, hora. O segundo é mais pequeno do que
o minuto e este mais pequeno do que a hora. As horas são feitas de todos os segundos e minutos juntas, e é
preciso ter sessenta minutos e muitos mais segundos para fazer uma hora.
É uma coisa muito confusa que eu na realidade nunca percebi, pois me indispõe refletir mais do que
o devido sobre coisas tão pueris. O Papalagui, contudo, faz disso toda uma ciência.
Como nunca fui capaz de entender isto, julgo que se trata de uma doença grave.
«O tempo escapa-se-me por entre os dedos!», «O tempo corre mais veloz do que um cavalo!», «Dáme um pouco mais de tempo!» – tais são os queixumes do homem branco. Suponhamos, com efeito, que
um branco tem vontade de fazer qualquer coisa e que o seu coração lhe arde em desejo por isso: que, por
exemplo, lhe apetece ir deitar-se ao sol, ou andar de canoa no rio, ou ir ver a sua bem-amada. Que faz ele
então? Na maior parte das vezes estraga o prazer com esta ideia fixa: não tenho tempo de ser feliz.»
Acusa mil e uma coisas de lhe tomarem a tempo.
Raros são os que, na Europa, dispõem realmente de tempo. A meu ver, é precisamente por o Papalagui
tentar reter o tempo com as mãos, que ele se lhe escapa por entre os dedos, como uma serpente por mão
molhada. O Papalagui nunca deixa que ele venha ao seu encontro. Mas o tempo é calma, paz e sossego,
gosta de nos ver descansar estendidos na nossa esteira. O Papalagui não se apercebeu ainda do que o tempo
é, não o compreendeu. É por isso que o maltrata, com os seus modos rudes.
Devemos destruir as suas pequenas máquinas do tempo e levá-lo a confessar que há muito mais tempo
do nascer ao pôr-do-sol do que ao homem lhe é dado gastar.
In O Papalagui. Discursos de Tuiavii,
chefe da tribo de Tiavea nos mares do Sul.
Lisboa, Ed. Marcador, 2012
(Excertos)
1 Papalagui — é o Branco, o senhor — nome que lhe é dado pelo chefe da tribo Tuiavii, de Tiavea, nos Mares do Sul.