Fogo devora até árvores e papéis
Antes de o fogo devorá-lo, como vem queimando as matas brasileiras para se abrirem campos de plantação de soja, passei um domingo, entre letras, palavras e sentenças, no Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, em São Paulo. O domingo, nessa gigantesca metrópole, esvazia a cidade, enche casas, apartamentos, alguns parques, cinemas e também museus. O Museu foi queimado, mas ficou na minha memória a agradável surpresa de ouvir versos de Augusto dos Anjos e improvisações do nosso Oliveira de Panelas. O museu dava-nos à vista a admirável arte nordestina e sua literatura. Era o topos de se aprender português de modo agradável, coisa que pouco se verifica nas escolas. Ali, ensinavam-se o surgimento da linguagem, a origem do nosso idioma, por quais mares navegou nossa língua, a compreensão, a extensão e a equivocidade do termo, as expressões populares na sabedoria do bom senso, a estética na poesia, nos romances, nas crônicas e a fala conceitual do nosso povo. Enfim, prazerosa aula sobre a etimologia e o neologismo, do erudito ao popular.
Naquela ambiência, fui despertado pela valorização aos razoáveis conhecimentos que adquiri de Grego e de Latim, e assim poderia criar alguma palavra, com a ajuda da analogia e da metáfora. Foi quando vi um indivíduo, despreocupado, relaxado, sentado num tamborete, ora cochilando, ora vigiando curiosos e transeuntes visitantes. Enorme de gordo, roncando, o que não lhe deixava fechar a boca, do momento em que entrei à hora em que saí. De vez em quando parecia consultar o tempo, lançando um vago olhar pela janela, interrompido apenas pelas pessoas que passavam, naquele entra e sai, umas chegando, outras saindo. Absorto, não falava, nem ria, nem reagia aos avisos sonoros. Não demonstrava qualquer interesse, tampouco pelo “trabalho”. De repente, veio-me a impressão de que se tratava de um “comedor de tempo”, engolia, sem mastigar, horas e horas com gulosa fluidez. A essa ideia, vieram-me os sinais, para conceituá-la, bastava juntar duas pequenas palavras do Grego: cronó-fago. Senti a vaidade de que tal neologismo poderia constar, naquele Museu, como aquele que revela possuir cronofagia. E segui: Se um dia, este modesto novo termo vier a fazer parte do nosso dicionário, assim deverá constar: Cronofagia [Do grego /chronophagía; / v./ /kron/(o)-, /-/fag(o)/ e /ia/.]. Substantivo feminino. 1. Estado, condição ou ato de cronófago. 2. Antrop. Prática regular e institucionalizada de consumir o tempo ou estado de ocioso, de quem gasta o tempo inutilmente; [Sin. ger.: inatividade.] E o desocupado se definiria como: Cronófago Do Gr. /Chronophágos /pelo lat. /Chronophagus/.] Adjetivo. Substantivo masculino. 1. Qualidade daquele que deixa o tempo passar. 2. Restr. Diz-se de alguém que gasta ou consome o tempo.
Cronófago, em grego, significa comedor de tempo. No linguajar vulgar, são os “papa-tempo”. Encontram-se em repartições, aonde vão para ter “emprego, jamais trabalho ou serviço”; coisas arrumadas por políticos, poucos em empresas particulares… A espécie existe também nos jardins, praias, praças, bares, cafés ou em lugares para longos papos. Também ficam em casa, na rede do alpendre, cujo formato do seu corpo, nela se desenha e, próximo ao punho, a marca da sua cabeça. Os cronófagos têm vida agendada: acordam tarde e tomam o café da manhã; esperam o almoço; almoçam e, em seguida, aguardam o jantar; jantam e cansam-se, vendo televisão. Dormem e, noutro dia, recomeçam tudo de novo. Habituaram-se a viver de boca aberta, como papa-vento. Pela boca, sem fastio, o tempo entra e abunda. O cronófago nunca perde tempo, é perdendo que ele ganha. Sua religião: esperar a providência divina. Manifesta pessimismo para aquilo que lhe exija esforço. Se qualquer coisa depender do trabalho, que seja dos outros. O provérbio diz que “tempo não espera por ninguém”. O cronófago inverte tal adágio, é ele que espera pelo tempo para devorá-lo. Desconheço se o tal cronógafo estava lá no dia do incêndio, certamente correu… Fogo é fogo, devora até árvores e papéis.