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CLUBE DE HISTORIA EM : O que mantém milhares de sem abrigo agarrados à vida

O que mantém milhares de sem abrigo agarrados à vida
Ainda que o estudo da relação de pessoas sem abrigo, sobretudo com o cão, seja uma
curiosidade e preocupação recente, a sua pesquisa tem geralmente como ponto de partida a
relação milenar do ser humano com animais que se tornaram parte da sua domus.
Sem abrigo e seus animais – relações de inclusão
O que revelam e sublinham com maior intensidade trabalhos como o da socióloga Leslie Irvine, da
Universidade de Colorado, intitulado My Dog Always Eats First, elaborado com base em entrevistas
feitas a 70 pessoas sem abrigo de 4 cidades diferentes, é que mais do que um simples fiel
companheiro, o cão é sobretudo o oxigénio e a razão por que milhares de sem abrigo se mantêm
agarrados à vida.
O cão, nas suas vidas, é muitas vezes a única família, aquele que oferece apoio e proteção social e
emocional, o que sente e reage à sua dor. Mas assim como eles, também o cão, que é razão por
que vale a pena viver cada dia, é um animal vulnerável, exposto à fome, ao frio e às mais variadas
doenças, mesmo quando alguém diz ser sempre o primeiro a comer. Se é um facto que cada sem
abrigo e respetivo animal devem ser tratados com dignidade e respeito, como defende
justamente a organização de Los Angeles, Angel Hanz,1
se não tiverem saúde e forem portadores

das mais variadas doenças, ambos se tornam seres sem dignidade, violados nos seus mais
legítimos direitos. Eis, pois, uma realidade muito para lá de uma mera ameaça à saúde pública, a
precisar de intervenção urgente.
Descritas com algum detalhe, as histórias da relação de pessoas sem abrigo com os seus animais,
com os seus cães, gatos ou com outros animais, questionam não a veracidade dos efeitos
benéficos desta relação, pois esta é inquestionável, mas perguntam-se como promovê-la, dada a
sua fundamental importância, resolvendo ou aliviando, da melhor maneira possível, a fragilidade
de ambos, bem exposta aos riscos e aos perigos da rua.
No entanto, o que uma primeira e superficial leitura sobre o tema revela, é que as respostas, na
sua conceção e realização, não são consensuais (a realidade é diversa e, obviamente, plural a sua
abordagem), e a abertura à diferença de cada um nem sempre parece sensível e inclusiva.
Alguns exemplos
O projeto inglês The Dogs Trust Hope criou uma lista com organizações que oferecem serviços aos
sem abrigo, amigos dos seus animais, e produziu uma brochura para ajudar organizações que
trabalham com os sem abrigo a tomarem decisões informadas quanto ao acolhimento de sem
abrigo com animais. Por outro lado, o mesmo projeto oferece em 85 localidades do Reino Unido
um tratamento veterinário gratuito aos animais dos sem abrigo ou de pessoas com problemas de
habitação.
Pets of the Homeless, também conhecida como Feeding Pets of the Homeless, é uma organização
de voluntários, não lucrativa, que oferece comida e cuidados veterinários aos animais de pessoas
sem abrigo, em comunidades locais dos Estados Unidos e Canadá. Faz parte também da sua
missão angariar fundos que possam ser usados no apoio a albergues que desejem acolher os
animais dos sem abrigo.
Apesar da oferta generosa de algumas destas respostas, a abertura às mesmas, por parte dos
sem abrigo com animais, pode não ser imediata. De facto, em Los Angeles, a organização Liz Fox
Rescue, nem com transporte gratuito e um bónus de 20 dólares consegue persuadir os sem abrigo
com animais a deslocarem-se aos serviços pro bono oferecidos por veterinários locais2
.
Com o propósito talvez de contornar esta resistência, mesmo quando quase tudo se oferece
gratuitamente, em Dusseldorf (Alemanha), a iniciativa Underdog vai ao encontro dos animais dos
sem abrigo com uma carrinha (ambulância) através da qual veterinários voluntários cuidam não
só dos animais, como prestam informação sobre médicos dispostos a cuidar gratuitamente da
saúde dos sem abrigo e lugares onde os mesmos podem residir com os seus animais, sobretudo
em momentos de maior adversidade, como no inverno. Esta carrinha é frequentemente

emprestada a outras cidades, e o que a faz funcionar é sobretudo as dádivas de muita gente.
Por outro lado, há também quem, em São Francisco (EUA), no combate à mendicidade com
animais, pague entre 50 a 75 dólares por semana, a pessoas sem abrigo, com doença mental
ligeira, para cuidar de cães problemáticos, inseridos em programas de habitação assistida. A
Wonderful Opportunities for Occupants (WOOF) desencoraja e castiga a mendicidade de pessoas
sem abrigo e oferece com a Animal Care and Control um programa gratuito de treino e cuidado
dos animais que termina com a adoção dos mesmos, longe das ruas. Mas o programa tem sido
muito criticado por uma outra organização, Peta3
, que defende que os pedintes, na sua grande
maioria, doentes mentais crónicos, são incapazes de cuidar não só de si como de animais que não
são adotáveis.
Realidade na cidade de Lisboa
Se a população dos sem abrigo dos Estados Unidos ronda os 3,5 milhões de pessoas, e se destas,
entre 5 a 10% vive com um cão ou um gato (havendo zonas do país onde esta percentagem chega
a atingir os 24%), em Portugal nunca se soube ao certo quantos são, nem quem dos sem abrigo
vive na rua acompanhado de algum animal. Contagens pouco credíveis, feitas no passado,
carecem, ano após ano, de atualização e de maior rigor e abrangência.
O fenómeno das pessoas sem abrigo que têm animais é, no entanto, real em Portugal, mas dele
apenas se conhecem casos avulsos. E o que deles se sabe é que muito frequentemente os animais
carecem de cuidados veterinários. Os seus donos até podem cuidar deles da melhor maneira
possível, mas a falta de recursos, de informação e até de vontade e de capacidade própria,
impedem que uma relação com os animais se viva com menos medos e, por conseguinte, com
maior qualidade e segurança. Por outro lado, é também um dado objetivo que pessoas sem
abrigo acabam por decidir continuar a viver na rua, por lhes ser geralmente proibida a residência
com os animais em albergues ou quartos de pensão.
Foi até há pouco tempo desejo e decisão da Câmara Municipal de Lisboa, onde o fenómeno
permanece, até hoje, mais visível, fazer o levantamento na cidade do número de pessoas sem
abrigo com animais, com o objetivo de poder disponibilizar um serviço veterinário gratuito aos
animais e estudar formas de apoio que beneficiassem os donos e a relação com os seus animais,
num trabalho que podia eventualmente tornar possível a coabitação de ambos em albergues, em
quartos de pensão ou noutro tipo de habitação que venha a ser pensada como resposta a esta
população – na linha precisamente do sucesso que teve a implementação do programa Casa
Primeiro (Housing First), em Lisboa. Esta decisão contava com o apoio da Ordem dos Veterinários
e com a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Lusófona, em Lisboa. É que o

projeto, para ser viável, não necessitava apenas da colaboração do Núcleo de Apoio aos Sem
Abrigo da cidade, ou das organizações que integram a plataforma que na cidade presta aos sem
abrigo os mais variados serviços, mas do trabalho de um grupo mais académico que pudesse não
só trabalhar a informação recolhida resultante de questionários previamente construídos e
respondidos, como pesquisar sobre a realidade fora do nosso contexto e as estratégias que lhe
tenham servido de resposta de sucesso.
Incluir não é integrar o mais no mesmo, mas criar novos espaços
Sobre pessoas em situação de sem abrigo há um enorme trabalho a fazer em Portugal. A sua
inclusão tem sofrido reveses, o que significa que por razões também de crise e de programas
eleitorais, o apoio não consegue ir além de uma assistência que os mantém reféns da mais severa
pobreza. E o esforço que as organizações fazem para contrariar uma realidade
fundamentalmente imposta por quem governa, também não é muito exemplar.
Ir ao encontro dos sem abrigo com animais será sempre um passo corajoso que leio como uma
ação determinada a inverter a relação destas pessoas com o público em geral. Até hoje, só
mesmo quem aceitava encaixar-se nas nossas estratégias de inclusão poderia ter algum sucesso.
Dar espaço aos animais que alimentam a coragem de viver de quem perdeu tudo e vive na rua, é
um passo que se dá numa direção que entende realizar as suas reais necessidades e aspirações, e
não as que a sociedade supõe e ainda hoje impõe.
Henrique Pinto
REVISTA CAIS
Setembro, 2013 (Adaptação)