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CLUBE DE HISTORIA EM : O piano vermelho

O piano vermelho

China, 1975.
A história verdadeira e extraordinária de uma rapariga que cresceu durante a revolução
cultural chinesa. Apesar das adversidades por que passou, esta é uma narrativa de triunfo,
pois a protagonista tornou-se na pianista Zhu Xiao-Mei,
internacionalmente conhecida.
Um luar sinistro abate-se sobre o campo Zhangjiake 46-19 na fronteira entre a
China e a Mongólia Interior.
Na camarata, os quartos repletos tresandam a suor doce, ao cheiro nauseabundo
das fogueiras de carvão extintas e da terra sobrelotada. Apertados uns contra os
outros, os camaradas já dormem no chão despido. Com passos pequenos e cautelosos,
a rapariguinha deixa a casa comunitária.
Lá fora, o vento fustiga.
Era suposto haver um recolher obrigatório rigoroso, mas já passou muito tempo
desde a última vez que o comité colocou guardas a vigiar. Tudo o que ela tem a fazer
é saltar o muro da latrina e seguir por um caminho ladeado de árvores. No final do
caminho, no limite da aldeia, ela já consegue ver a casa da sua cúmplice, a Mãe Han.
Um piano direito ocupa o armazém. À luz do candeeiro o teclado é amarelo.
Puxa um banco baixo e levanta as mãos congeladas. Faz, então, uma pausa. O
seu pensamento retrocede, no tempo, até ouvir o seu primeiro professor de piano
murmurar:
— Precisas de aquecer as tuas mãos, minha pequenina, de preferência com um
prelúdio de Bach, em vez de martelares nas teclas como se fosses louca.
Ela inclina-se para diante, o seu corpo frágil perdido no casaco azul, as tranças
roçando as teclas e, sem esperar mais,
entrega-se ao seu prelúdio.
O calor regressa.
A música eleva-se, livre, todavia
confinada pelas paredes grossas.
Esta noite marca o fim dos seus cinco
anos de exílio.
Como milhares de outros, as suas
quatro irmãs, a sua mãe e o seu pai foram
enviados para outros campos. Os pianos são
criminosos. Os pianistas são criminosos.
Encerram-se as escolas. O partido está a reeducar toda a gente.
Do nascer ao pôr-do-sol, ela tem de aprender uma nova forma de vida: como
plantar arroz, colher legumes, apanhar
fruta e cortar lenha com o seu grupo de
trabalho. A isto chama-se “aprender
através do trabalho e da autocrítica.”
A Grande Revolução Cultural
Chinesa continua.
Os seus dedos deslizam pelo teclado.
Ela esquece o sofrimento do dia-a-dia, a
hora tardia, o cansaço e o perigo.
Concentrada e determinada, ela sente as
teclas. Mão direita, mão esquerda:
praticando arpejos, ritmos e contrapontos.
E esboça um meio sorriso, fugaz.
Ontem, um guarda ficou perplexo quando a apanhou em flagrante. Ela fingiu
que estava a ensaiar uma ópera revolucionária que a esposa do Presidente Mao
compôs.… e ele foi-se embora.
— Viva o Presidente Mao!
Transportar um piano, toda aquela distância até aqui — que loucura!
Há três anos enviaram a sua mãe, adoentada, para Pequim. A jovem pianista,
desprovida do seu instrumento musical, traçou um plano, enviou mensagens secretas
e, obstinadamente, tentou persuadi-la… A mãe acabou por ceder: mandar-lhe-ia um
piano.
O piano viajou num vagão de carvão do comboio que transportava provisões
para o campo de trabalho. Três semanas de viagem e algumas cordas partidas. Tudo
o que se podia ouvir das notas agudas era o doing dos martelos, mas as notas graves
ouviam-se melhor: sonoras e profundas…
Um piano no campo Zhangjiake 46-19… Que milagre!
Esta noite ela regressa à sua infância e ao som abafado da cidade. Ela era a grande
esperança da sua mãe: dotada ao piano, cheia de sorte, e dez longas horas de treino
diário. Música às refeições, música antes de se deitar. Seis anos numa escola de música
para crianças dotadas. Concertos na rádio Pequim.
Quase chegou a odiar o piano.
Mas, esta noite, junto do piano degradado, saboreia uma felicidade profunda, a
maior que alguma vez sentira. Desde há alguns anos, páginas do prelúdio de Bach O
Cravo Bem Temperado passam de mão em mão, no campo de trabalho. O pai de um
amigo envia-as em embrulhos.
Algumas folhas vêm escondidas em pacotes. Se houver uma vistoria, elas são
confiscadas e só lhe resta aguardar um novo embrulho.
Decide então fazer o seu próprio livro de música e começa a transcrever a
partitura em cadernos finos, feitos à mão. Finas folhas de papel frágil e usado. Quanto
mais ela escreve, tanto mais pequena se torna a sua caligrafia.
E receia não ter espaço suficiente.
Durante as aulas de autocrítica, três horas diárias depois do trabalho, ela usa o
Pequeno Livro Vermelho para esconder o seu projeto. Copia as pautas, as notas,
escondidas debaixo da sua túnica. Durante semanas, ela aplica-se com persistência,
página após página. Neste momento já tem alguns cadernos escondidos.
Mas que finalidade pode ter a música? Poderá apagar cinco anos de exílio, uma
juventude perdida, frio, fome, miséria e
prisão?
Todas as noites, durante três anos e duas
horas, após o trabalho nos campos e as aulas de
autocrítica, as suas mãos redescobrem o velho
piano lamuriento.
Tocar apenas por amor à música. Tão
simples como isso.
Um eco da música dentro de todos nós,
que pouco a pouco traz alguma humanidade à
nossa vida e a um sistema cruel.
Que força! E que loucura também!
No mês passado, a orquestra de Filadélfia esteve em Pequim. Descer de novo o
vale, esgueirar-se num comboio. Duzentos quilómetros de perigos, desde a fronteira
da Mongólia até à capital.
Música, felicidade… e um pouco de liberdade!
Esta noite, fascinada pelas suas música e memórias, a jovem pianista não ouve o
choro abafado da Mãe Han. Nem sequer sente a presença de intrusos. Baixando o
olhar sobre a mão esquerda, quando se apressa em direção às notas escritas mais em
baixo, vislumbra, de repente, dois pares de botas e uniformes verdes.
O seu coração para.
Os dedos congelam em pleno ar.
O chefe de campo e o seu adjunto estão
à porta. As suas últimas notas ficam, por um
breve instante, suspensas no ar. Faz-se um
longo silêncio.
Subitamente, dá um salto.
A sua cadeira cai ao chão. Com a
cabeça inclinada, corre para o exterior.
O adjunto grita-lhe:
— A tua música não vale um chavo!
Correndo como louca em direção às camaratas, ela já não consegue ouvir.
De manhã, em frente à multidão reunida, ela e a sua cúmplice são denunciadas,
repreendidas e insultadas. O adjunto, trocista, pendura-lhes uns letreiros ao pescoço
onde se regista a ofensa.
Arrastam o piano para a praça e esmagam-no brutalmente para ser queimado.
As cordas são enroladas em carrinhos e usadas para atar os molhos da lenha.
Cada família recebe uma parte. Exceto as famílias educadas, claro.
Acaba a cerimónia. Todos se dirigem para os campos, cantando canções
patrióticas.
Mãe Han é levada para fora da aldeia.
Os guardas retêm a jovem pianista em Zhangjiake 46-19.
Intensifica-se a sua reeducação e prolonga-se a sua estadia.
Recolher e transportar para os campos os excrementos para fertilizar o solo: é o
que acontece a um artista rebelde.
E a música no seu coração abranda.
Passa um ano.
Setembro de 1976 — o Presidente Mao morre.
Começa a desocupação do campo Zhangjiake 46-19.
Uma tarde, chamam-na ao comité.
Ela fica apreensiva.
Na sala fria e cinzenta, debaixo de um retrato resplandecente de Mao, o
responsável do campo diz-lhe que vai regressar a Pequim. E ela parte de madrugada.
É a última a abandonar o campo de reeducação Zhangjiake 46-19.
Sob a luz pálida da lua, ela parte, segurando apenas os seus pequenos cadernos
que sobreviveram.
André Leblanc; Barroux (ill)
The red piano
Victoria, Wilkins Farrago Pty ltd, 2009
(Tradução e adaptação)