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CLUBE DE HISTORIA EM : Não basta dizer “não”

Não basta dizer “não”
TRANCENDER O MUNDO DOS OBJETOS
A emergência das supermarcas tem a sua origem numa ideia simples e
aparentemente inócua, desenvolvida por teóricos da área de gestão em meados dos anos
80 do século XX, segundo a qual o sucesso das empresas dependia de produzirem marcas
e não produtos.
Até então, a principal preocupação de todo e qualquer bom empresário era produzir
bens, embora estivesse também subentendida a importância de promover a marca através
da publicidade.
Por esta altura, contudo, a venda de produtos de marcas clássicas como Tide, Levi’s
e Marlboro tinha começado a decair, porque o mercado estava saturado de artigos
similares e, em contexto de recessão económica, a escolha do consumidor baseava-se
forçosamente no preço e não na marca. As velhas estratégias publicitárias tinham deixado
de surtir efeito e dir-se-ia que os consumidores tinham criado as suas próprias
resistências.
Foi então que novas companhias fizeram a sua entrada no mercado: Nike, Apple,
Tommy Hilfiger e Starbucks, entre outras. Estas empresas baseavam-se no pressuposto
de que era necessário criar um produto associado a uma filosofia. Ou seja, a marca seria
direcionada para um conjunto de valores partilhado por consumidores e empresa, e esta
venderia, a um preço elevado, produtos que simbolizavam o desejo humano de fazer parte
de uma tribo, de se sentir incluído num círculo de pertença.
Daí que, quando os jovens faziam fila durante toda a noite para comprar um par de
sapatilhas Nike a 250 dólares, não era bem sapatilhas que estavam a comprar. Os jovens
estavam a comprar a concretização do sonho de Michael Jordan, cujo império florescente
deu origem à primeira supermarca. Da igual forma, quando os pais deles compravam
computadores Apple, estavam a levar para casa o emblema de uma visão profundamente
otimista do futuro que os instava a “pensar de forma diferente”. E quando, ao ir para o
emprego, se pagava quatro vezes mais por um café, era porque a Starbucks não vendia
apenas café. Vendia a ideia de um terceiro espaço, que não era a casa nem o emprego,
mas antes um espaço de comunidade.
O cunho de autenticidade das campanhas também aumentava exponencialmente à
medida que eram utilizados ícones artísticos e revolucionários, vivos ou falecidos: Gandhi,
Martin Luther King, Picasso, Mandela, Dalai Lama. Muitas destas companhias afirmavam,
despudoradamente, que a produção de artigos era apenas um aspeto secundário das suas
operações, e que a liberalização do comércio e as reforma laborais recentes tinham
permitido que os seus produtos fossem manufaturados a preços supercompetitivos por
contratadores deslocalizados. Não interessava realmente quem confecionava o produto,
porque o valor do artigo não advinha da manufatura mas do desenho, da inovação e do
marketing.
Rapidamente se estabeleceu o consenso de que as companhias que não aderissem a
este modelo eram empresas que tinham demasiados bens, demasiada mão-de-obra e
estavam demasiado sobrecarregadas. O velho processo de produção — que envolvia a
gestão das fábricas, a responsabilização por milhares de trabalhadores efetivos a operar
a tempo inteiro — começou a parecer-se cada vez menos com uma fórmula de sucesso e
cada vez mais com um passivo tóxico. O objetivo agora era deter um negócio circunscrito
e uma marca omnipresente.
Muito em breve, as multinacionais começaram a competir por um modelo de
produção cada vez mais delgado, para empregar a terminologia económica vigente. A
melhor forma de ganhar a corrida da competitividade implicava ter menos bens imóveis,
menos empregados efetivos, e projetar mais imagens poderosas em vez de produzir mais
produtos.
ESPAÇO ZERO, EMPREGOS ESCASSOS
A ascensão meteorítica deste modelo de negócio teve duas consequências imediatas.
Por um lado, a nossa cultura ficou mais saturada de marketing. Por outro lado, o trabalho
e os trabalhadores começaram a ser vistos como cada vez mais dispensáveis.
Marcas como a Nike e a Adidas ganharam proeminência em termos de agressividade
publicitária, pese embora os seus produtos fossem fabricados nas mesmíssimas fábricas
e pelas mesmíssimas pessoas. A grande questão é que a capacidade manufatora deixou
de ser vista como uma competência-chave e o enfoque deslocou-se para a criação de uma
mitologia corporativa capaz de projetar sentido num qualquer objeto apenas pelo facto de
este ter uma marca gravada.
A imprensa descrevia frequentemente este fenómeno como uma operação de
deslocalização, que consistia em deslocar as fábricas da Companhia A ou B para um país
onde a mão-de-obra era mais barata.
Contudo, quando visitei fábricas clandestinas na Indonésia e nas Filipinas, onde eram
fabricadas roupas da Gap ou computadores da IBM, apercebi-me de que as empresas não
deslocavam as suas fábricas europeias e norte-americanas para outros territórios. O que
acontecia era que as fábricas originais eram pura e simplesmente encerradas. O que tinha
sido criado era uma nova e complexa rede de fornecimento, que tornava muito difícil
descobrir que produto era fabricado por quem e onde.
Além do mais, quando as condições sub-humanas em que os operários trabalhavam
eram denunciadas, como, por exemplo, no caso da manufatura de sapatilhas da Nike ou de
T-shirts da Disney, e os consumidores ou os jornalistas queriam que as empresas se
retratassem, estas afirmavam quase invariavelmente: “Estamos tão chocados quanto
vocês e vamos suspender de imediato o negócio com esse contratador.”

O sucesso deste modelo é fácil de explicar. Se as coisas corressem bem — se os
anúncios fossem apelativos, se se investisse bastante em desenho, se se promovesse a
identidade da marca através de inúmeros patrocínios e promoções cruzadas — muitas
pessoas estariam dispostas a pagar fosse o que fosse pelos artigos.
Daí que o sucesso das chamadas “marcas de estilo de vida” tenha despoletado uma
espécie de mania que faz com que as marcas compitam entre si pela maior rede de
extensões ou que tentem criar experiências 3-D mais imersivas, que oferecem aos clientes
oportunidades de entrar nesse universo e misturar-se com as suas marcas favoritas.
Naomi Klein
No is not enough
Chicago, Haymarket Books, 2017
(Tradução e adaptação)