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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DE HISTÓRIA EM : Justiça económica e regeneração ecológica

Justiça económica e regeneração ecológica
É fundamental criar um sistema de valores adequado à transformação profunda de
que a nossa civilização necessita. Dado que os valores que escolhermos hoje são os valores
que enformarão o nosso futuro, o desafio que enfrentamos não podia ser maior.
Em décadas recentes, o neoliberalismo estabeleceu-se como paradigma dominante e
fê-lo baseado numa noção deturpada de liberdade individual. A nossa tarefa atual consiste
em substituir a sua ética de mercado por um sistema ético que assente na responsabilidade
partilhada, na noção de interdependência, e que incorpore as dimensões racional, intuitiva,
científica e espiritual.
As maiores transições evolutivas da vida na Terra têm sido caracterizadas por
aumentos de cooperação, tal como pudemos verificar com o aparecimento dos hominídeos.
Ao enfrentar as duras condições da vida na savana, os nossos antepassados descobriram
que a cooperação lhes permitia protegerem-se e alimentarem-se de forma muito mais
eficaz. Desenvolveram também emoções morais, tais como um sentido de justiça, de
cooperação e de altruísmo, que lhes permitiram diminuir, de forma colaborativa, o poder de
líderes agressivos e perigosos, motivados por impulsos de dominação atávicos.
Essas emoções morais constituem a base da moralidade que carateriza hoje a nossa
espécie. Testes sofisticados demonstraram que, quando somos confrontados com uma
escolha, o nosso impulso inicial se encaminha no sentido da cooperação e que só
posteriormente emergem comportamentos egoístas. Várias experiências atestaram ainda
que crianças em fase pré-linguística revelam um sentido elementar de justiça, empatia,
compaixão e generosidade, bem como uma capacidade para distinguir entre ações afáveis
e ações cruéis. A moralidade é, pois, intrínseca à condição humana.
Contudo, com o advento da agricultura e do sedentarismo, a balança do poder inclinouse para os que conseguiram estabelecer uma hierarquia dominante e fundar sociedades
patriarcais que recompensavam o machismo e a violência, aquilo que Riana Eisler apelida
de “sistemas de dominação.”
A história mundial dos últimos milénios testemunha amplamente os conflitos que
tiveram lugar entre diferentes sistemas de dominação, um dos quais — a civilização europeia
— se tornou o sistema predominante nos últimos séculos. A civilização europeia impôs a sua
cosmologia dualista a todos os povos que conquistou, o que faz com que a atual visão do
mundo seja ainda fortemente caraterizada por paradigmas de separação e de dominação.
Assim sendo, os seres humanos são vistos como seres egoístas, competitivos e
profundamente isolados de uma natureza dessacralizada, que foi relegada para um papel
de mero recurso mecânico, desprovido de qualquer valor intrínseco.
Esta visão do mundo encontra-se nos antípodas da base ética e histórica característica
de outras tradições culturais e tem sido invalidada por descobertas científicas modernas.
Aliás, a ciência de sistemas confirma a perspetiva partilhada pelos ensinamentos das várias
tradições que postulam que estamos todos intrinsecamente interligados. A interpenetração
de todos os aspetos da realidade, o conceito de “interser” de Thich Nhat Hanh, deve estar no
cerne de toda a estrutura ética que vise uma transformação política e cultural verdadeira.
Se nos virmos como indivíduos isolados, os nossos valores estarão inevitavelmente
centrados numa busca egocêntrica de felicidade a expensas dos outros. Se, pelo contrário,
nos identificarmos com a nossa comunidade, os nossos valores enfatizarão o bem-estar do
grupo. Quando nos vemos como parte da natureza, sentimo-nos impelidos a proteger o
mundo natural.
Durante os séculos precedentes, enquanto o imperialismo europeu depredava o resto
do mundo, assistimos também à progressão gradual do conceito de identidade no sentido
de uma comunidade mais alargada. Esta mudança inspirou conceitos como os direitos
humanos e conduziu a tentativas cada vez maiores de inscrever o conceito de justiça moral
nos códigos de conduta nacionais e internacionais. A Carta da Terra constitui um modelo
exemplar da expansão desta visão moral.
Contudo, no contexto atual de uma catástrofe ambiental iminente e de um potencial
colapso civilizacional, temos de perguntar-nos se esta expansão moral é suficiente. O que
poderá ser feito para a potenciar e para redirecionar a nossa trajetória catastrófica? Será
possível desenvolver uma visão moral, transcultural e global, que se estenda a toda a vida
na Terra e que possa inspirar uma transição profunda no sentido da justiça económica e da
regeneração ecológica?
Enquanto o Ocidente tem ainda de redescobrir a interconexão que rege as nossa vidas,
as culturas tradicionais milenares têm-se regido desde sempre pelos princípios que
caracterizam o cerne da moralidade humana. A ativista social LaDonna Harris, da nação
Comanche, identificou quatro valores centrais, conhecidos como os quatro Rs, que todos os
povos indígenas do mundo partilham, e que afirmam a interconexão de todos os aspetos da
criação: Relação, Responsabilidade, Reciprocidade e Redistribuição.
Cada um destes aspetos refere-se a um tipo de dever individual e coletivo. Relação
refere-se à relação com a nossa família e com todas as nossas outras “famílias”: animais,
plantas e todos os seres vivos. Responsabilidade é o dever de cuidar e apoiar todas essas
famílias. Reciprocidade é o dever de manter o equilíbrio entre o que damos e o que retiramos
do mundo que nos rodeia. Redistribuição é o dever de partilhar o que temos, não só em
termos de riqueza material, mas também em termos de talentos, tempo e energia.
A nossa tarefa crucial é incorporar estes princípios de sabedoria tradicional num
sistema de valores que possa redirecionar a humanidade para um futuro próspero. Um futuro
no qual a nossa identidade conjunta se expanda para além de fronteiras individuais e
nacionais, de forma a incluir toda a humanidade, todos os seres sencientes e toda a Terra.
Em última análise, são os nossos valores que guiam as nossas ações e que moldarão o nosso
futuro.
Jeremy Lent