A história de José Alberto Gutiérrez e da biblioteca que ele criou
Vivem dois Josés no bairro de La Nueva Gloria na cidade de Bogotá, capital da
Colômbia.
O pequeno José começa a despertar.
Estava a sonhar com o Paraíso, mas a luz da
manhã acorda-o.
Dá-se conta de que é sexta-feira.
“É quase sábado,” diz de si para si num
suspiro.
À procura
de
Palavras
Durante a semana, José vai de
bicicleta para a escola.
Senta-se e presta atenção ao
que a professora diz.
Joga futebol com os amigos.
O dia estende-se diante dele
como as ruas, como as colinas. No
dia de amanhã, o seu sonho vai
tornar-se realidade.
Umas ruas mais adiante, um
outro José sabe bem o que são dias
compridos. Abandonou a escola
cedo, porque a mãe não conseguia pagar-lhe os estudos, e foi trabalhar para as obras.
Escavava a terra com as próprias mãos e assentava tijolo após tijolo até que, do
nada, surgia sempre alguma coisa: uma parede, um edifício, uma casa. Mas, embora
trabalhasse muito, havia sempre tempo para ler uma história à noite.
Uma história ao final de um longo dia era como estar no Paraíso.
Neste momento, à hora dourada do crepúsculo, enquanto o primeiro José
regressa a casa e a mãe o chama para jantar, o segundo José prepara-se para conduzir
o camião do lixo que vai percorrer os bairros abastados de Bogotá.
O motor do camião tossica e ganha vida; a luz dos faróis corta a escuridão. José
é lixeiro e recolhe o lixo das ruas da cidade até de madrugada.
Enquanto conduz, José examina os passeios, perscrutando as sombras. No lixo
doméstico, procura tesouros escondidos: livros! Alguns estão empilhados de maneira
organizada, como se estivessem à sua espera. Outros requerem que se procure no
meio do lixo, mas José não se importa.
Tudo começou com aquele primeiro livro que José encontrou há já muito tempo.
Estava a recolher o lixo e descobriu lá no meio um livro grosso — Anna Karenina
escrito por Leão Tolstoi. Pô-lo de lado e leu-o vezes sem conta. Sempre que o abria,
era transportado para um tempo e um espaço longínquos, repletos de comboios a
vapor, salões de baile à luz das velas, trenós deslizando na neve. A seguir a esse,
descobriu outros livros, que também leu. Eram todos diferentes uns dos outros e cada
um remetia para um mundo muito próprio à espera de ser descoberto.
O senhor José termina finalmente a sua volta. O camião do lixo avança pelas ruas
largas em direção à zona mais movimentada da cidade onde fica a garagem. A seu
lado, segue uma carga preciosa: uma pilha de quase cinquenta livros, uns finos, outros
grossos, uns com ar de terem sido muito manuseados, outros quase novos. Essa pilha
vai juntar-se a outras. Uma enciclopédia de animais de A a Z, um livro de contos de
fadas, um romance muito conhecido. Todos esses livros seguem ao lado de José, as
páginas vibrando com a trepidação do motor.
José regressa agora a casa. Para na soleira da porta, equilibrando os livros
debaixo do braço e mete a chave na fechadura.
Tem agora algumas páginas para ler e algumas horas para sonhar antes do
amanhecer de um novo dia. À noite, vai voltar a Macondo, uma aldeia mágica nas
profundezas da selva colombiana.
José perde-se num lugar e num tempo muito próprios.
Finalmente é sábado, sábado, sábado!
À medida que o pequeno José corre o mais depressa que consegue, outras
crianças do bairro juntam-se a ele. É como se fosse uma corrida de que todos saem
vencedores.
Chega por fim ao Paraíso.
Como habitualmente aos sábados, lá está o senhor José à espera deles. Assim
que os vê, o senhor José cumprimenta-os com um sorriso caloroso.
José entra no Paraíso e depara com
pilhas e pilhas de livros, umas ao lado das
outras como se fossem as casas do bairro
onde moram. São livros resgatados pelo
senhor José e que enchem todos os recantos.
Há livros ilustrados para crianças. Há
grandes romances de capas elegantes. Há
manuais sobre temas complicados.
José demora-se, deambulando por entre as altas pilhas de livros, com medo de
os perturbar, hesitando em mexer-lhes.
O senhor José vem ao seu encontro. Pega num livro e sorri. O senhor José
senta-se. José senta-se a seu lado. Todo o bairro se aquieta.
Abre-se o livro.
O livro leva-os a um lugar muito para além do bairro, um lugar aonde José não
consegue ir de bicicleta. De cada vez que viram as páginas, os dois Josés veem coisas
novas, muito diferentes das ruas e das colinas a que estão habituados.
Procuram e procuram e continuam a procurar.
O pequeno José acaba por fazer a sua seleção. Com um leve aceno de cabeça
e um sorriso tímido, agradece ao senhor José e voa para casa. Está morto por
mergulhar para dentro do novo livro e, por isso, despacha as tarefas domésticas, janta
num ápice e lava a cara e as orelhas a correr.
Por fim, enfia-se na cama, examina o livro e devora a história, que o aquece e
reconforta muito mais do que o jantar.
O pequeno José desperta com a luz da manhã. O livro está metido debaixo da
almofada. Revisitou-o durante o sono, sonhando com um planeta solitário, uma flor,
um rapaz, uma raposa e as viagens que fazem juntos.
“É domingo”, diz de si para si num suspiro. Vai ter de novo uma semana inteira
de espera: pelo nascer do sol, pelos amigos, pelo sábado seguinte, pelo senhor José
a abrir a porta da sala onde os livros esperam nas prateleiras, pela próxima descoberta.
Uma nota sobre o Autor
A capital da Colômbia, Bogotá, tem à volta de dez milhões de habitantes. Em toda a
cidade, só há dezanove bibliotecas. Até 2000, não havia nenhuma no bairro de La Nueva
Gloria, até que José Alberto Gutiérrez decidiu pôr mãos à obra e inverter essa situação.
Gutiérrez viveu sempre em Bogotá. Atualmente, é conhecido como o Senhor dos
Livros, mas começou por trabalhar na recolha do lixo. No início da sua atividade
profissional, Gutiérrez encontrou no lixo um exemplar de Anna Karenina, descoberta que
ele descreve como o “livrinho que despoletou a minha paixão e que deu origem a esta
bola de neve que não tem parado de crescer.”
Hoje em dia, para além de ser o responsável pela biblioteca, Gutiérrez dirige a sua
fundação, La Fuerza de las Palabras (A Força das Palavras), que disponibiliza livros a
escolas, associações e bibliotecas disseminadas por toda a Colômbia. A sua iniciativa foi
aplaudida pelo mundo inteiro. Saíram reportagens no jornal colombiano El Tiempo e no
norte-americano U.S. News and World Report, entre outros, e falou-se dela nos noticiários
da BBC. Gutiérrez também partilhou a sua experiência com vastos públicos: duas vezes
na Feira Internacional do Livro de Guadalajara e na conferência anual da Associação
Austríaca para a Literacia.
Gutiérrez decidiu voltar a estudar aos 50 anos. Completou o ensino secundário ao
cabo de três anos, mas aquilo que o notabilizou foi a criação da sua biblioteca. “Fui muitas
vezes alvo de troça”, diz. “Quando falava no meu projeto, as pessoas riam-se. Agora, vinte
anos depois, estão espantadas. Não vejo a hora de trocar o camião do lixo por um camião
cheio de livros e viajar pelo país inteiro. Tenho a certeza de que vou conseguir fazê-lo.”
Angela Burke Kunkel
Digging for Words – José Alberto Gutiérrez and the Library He Built
Schwartz & Wade, 2020
(Tradução e adaptação)