os Meus pés são a cadeira de rodas
Todos os dias, Maria acorda às sete horas da manhã. Ainda sonolenta, senta-se na cama e começa
a vestir-se sozinha. Ela tem dificuldade para calçar os sapatos. Com as mãos, mal consegue alcançar as
pontas dos pés.
Por volta das oito horas, acaba de se vestir. A segurar as pernas, arrasta-se até à ponta da cama.
O pequeno-almoço já está na mesa.
— Mãe, onde está a geleia? — pergunta Maria.
— Está no armário — a resposta da mãe vem da sala.
Maria vai buscar a geleia e fica contente por não precisar de ajuda.
— Podes ir às compras por mim? — pergunta a mãe.
— Com certeza! — alegra-se a filha.
É a primeira vez que a mãe deixa Maria ir sozinha ao supermercado.
— E o que devo trazer? — pergunta a menina, animada.
— Um litro de leite e seis maçãs. Consegues carregar tudo sozinha?
— Claro — responde Maria, a sorrir, e sai de casa toda orgulhosa.
Maria gosta do barulho e do movimento da rua. Sobretudo agora, nas férias, quando há crianças
a brincar por todo o lado. Por momentos, para a observá-las. Sente uma pontinha de tristeza. Gostaria
de poder brincar com elas.
No parque, repara numa menina cuja mãe acaba de chegar para a ir buscar. Elas olham uma para
a outra com curiosidade. Em seguida, Maria vê um grupo de crianças a troçar de um menino. Que
maldade! O grupo, aos berros, chama ao menino “baleia gorda”, só porque ele tem uma aparência
diferente das outras crianças.
Muitas pessoas cumprimentam Maria, embora ela não conheça nenhuma delas.
No início, ela fica contente com isso, mas logo depois pensa: “Porque é que todos olham assim
para mim?” Especialmente o homem sentado no café, que não tira os olhos dela há uma data de tempo.
Na terceira vez que Maria olha para trás, ele ainda está a observá-la.
À frente de uma loja de roupas, Maria encontra novamente a menina do parque. A mãe dela está
a olhar para as montras.
— Que coisa esquisita é essa? — pergunta a menina.
“Isto é apenas uma cadeira de rodas”, gostaria de responder Maria.
Mas, antes que pudesse fazer isso, a mãe, muito zangada, empurra a menina para um canto e diz:
— Não se deve perguntar uma coisa dessas, Ana! Só me fazes passar vergonha…
“Mas eu sou como todas as outras crianças”, pensa Maria com tristeza, e não entende por que
razão a mãe de Ana reage assim.
Para atravessar a rua, todos esperam
que o semáforo para peões fique verde, e
logo se despacham. Maria desce pelo passeio
rebaixado e atravessa a rua o mais rápido que
pode.
De repente, depara com um passeio alto
e não consegue subir. Sem saber o que fazer,
olha à sua volta. Ninguém lhe presta atenção.
Todos têm pressa. O semáforo para peões
fica vermelho, e Maria tem vontade de
chorar.
De repente, encontra o menino que todos chamavam “baleia gorda” no parque, e que a tinha
seguido.
— Olá, eu sou o Jonas. Posso ajudar-te?
— Eu chamo-me Maria — sorri ela, aliviada. — Por favor, faz força no pedal aí atrás.
Seguindo as instruções da menina, Jonas inclina a cadeira e coloca as rodas dianteiras no passeio.
Depois coloca as rodas traseiras. Agora Maria pode continuar o seu caminho.
— Obrigada, Jonas!
Mais adiante, Maria encontra um casal de velhinhos a apanhar sol num banco da praça.
— O que é que te aconteceu? — pergunta o senhor, parecendo ter pena dela.
Maria para. Quer contar a história do passeio alto, mas não tem tempo para isso. A senhora suspira
e diz:
— Pobrezinha, tão jovem!
Maria fica vermelha de raiva. Porque é que toda a gente se comporta assim com ela? Logo hoje,
que vai fazer compras sozinha pela primeira vez!
— Eu não sou diferente das outras crianças! — grita para os velhinhos.
E segue o seu caminho.
Chega finalmente ao supermercado. Mas, logo na entrada, é obrigada a parar diante dos degraus.
“O que é que eu faço agora?”, pensa ela, aborrecida. Então, vê uma mãe a empurrar um carrinho
de bébé por uma rampa.
Aliviada, a menina usa a rampa para entrar no supermercado.
Encontra a prateleira dos laticínios rapidamente. Quando está quase a pegar no leite, aparece um
vendedor e coloca-o nas suas mãos. Ele sorri amigavelmente.
Mas Maria irrita-se: “Eu não pedi para me dar o leite!”
A fruta também é fácil de encontrar. Quando ela se prepara
para pegar num saco de maçãs, alguém lho põe nas mãos. O
vendedor sorri gentilmente. Maria fica furiosa e coloca a fruta na
cadeira de rodas.
— Eu quero pegar nas minhas maçãs sozinha, como toda a
gente!
O vendedor meneia a cabeça, sem entender nada.
Maria chora, escondida entre as prateleiras de biscoitos e chocolates. De repente, ouve alguém
dizer:
— Não fiques triste.
É o Jonas.
— As pessoas tratam-me como se eu fosse a pessoa mais desajeitada, ignorante e desamparada
que já viram na vida!
— É por causa da cadeira de rodas — diz o menino.
— Mas isso não tem nada de especial! Sou paraplégica desde que nasci.
— O que é “paraplégica”? — pergunta Jonas.
— Não consigo mexer as minhas pernas. Os meus pés são a cadeira de rodas. Mesmo assim, sou
igualzinha a todas as crianças! — responde a menina.
Jonas balança a cabeça:
— Mas és diferente.
— Não! Tu e eu somos como todos os outros — diz Maria.
O menino balança a cabeça novamente:
— Mas tu andas numa cadeira de rodas. E eu sou mais gordo do que os outros. Tu e eu temos algo
de especial!
Maria não entende o que ele quer dizer.
Jonas pega-lhe pela mão e puxa a cadeira de
rodas.
No caminho para casa, os dois passam pelo
banco da praça. Os velhinhos ainda estão lá. Maria
toca no braço da senhora, coloca um chupa-chupa
na mão dela e diz:
— Também tenho pena da senhora. Pegue,
isso vai pô-la feliz!
A senhora não entende nada e dá outro
suspiro. Maria olha para o senhor e diz, a sorrir:
— O senhor gostaria de saber o que aconteceu comigo? Encontrei um amigo, estou feliz.
— É assim mesmo: isso é que é especial! — acrescenta Jonas.
Os dois amigos começam a girar tão rápido com a cadeira de rodas que o casal de velhinhos fica
tonto só de olhar.
Jonas e Maria param quando chegam ao semáforo.
— Já consegues fazer muita coisa sozinha. Mas, de vez em quando, precisas de ajuda. Como toda
a gente — diz o menino. — Pergunta a alguém se pode ajudar-te a subir para o passeio.
Maria toma coragem e toca nas calças de um homem que passa apressado. Ele fica vermelho.
— Desculpa, não te vi… não sabia… o que… — gagueja o homem, e depois ajuda a menina a
atravessar.
Os dois amigos piscam o olho…
Jonas quer continuar a empurrar a cadeira de rodas da amiga, mas de repente Maria resolve
mudar de direção.
— Desculpe, senhor — diz ela a um agente da polícia que está a multar os carros estacionados em
locais proibidos. — Ali no semáforo, o passeio é alto e não consigo subir sozinha.
— Mas isso é muito perigoso — concorda o agente. — Vou avisar a Câmara ainda hoje.
— Obrigada! — agradece Maria.
Jonas fica todo orgulhoso da atitude da amiga.
Numa loja de sapatos, Jonas e Maria reencontram Ana e a mãe.
Desta vez, Ana não pergunta nada. Aprendeu que não deve fazê-lo.
— Olá — diz Maria. — Eu sou deficiente!
A mãe da Ana fica perplexa.
— O que é “deficiente”? — pergunta Ana.
— É alguém que não pode andar, por exemplo — responde Maria.
— Em vez de caminhar, nós rodamos por aí — explica Jonas.
Jonas sobe para a parte de trás da cadeira de rodas da Maria e os dois correm rua abaixo.
Ana vai atrás deles.
Mais uma vez, as pessoas ficam a olhar.
Especialmente o homem do café e a moça que vende jornais.
Mas agora, Maria já não se importa com isso.
Uma vida sobre rodas
Olá! Acabas de conhecer Maria, personagem principal deste livro.
Lembras-te que, no começo da história, Maria viu umas crianças a brincar na praça e sentiu-se triste ao
pensar que gostaria de brincar com elas? Mas porque não podia ela brincar com as outras crianças? Por
causa do problema que tem, de não poder mexer as pernas? Será? Vamos voltar à praça e ver se
descobrimos?
A que estão as crianças a brincar? Escorrega, skate, bicicleta, jogo da macaca, baloiço, patins, caixa de
areia…
Bom, vamos pensar um pouco. Penso que seria difícil para Maria brincar com o escorrega, o skate e a
bicicleta. Mas não achas que ela poderia brincar ao jogo da macaca? Bastaria que ela e os amigos
inventassem umas regras novas para o jogo! Por exemplo: Maria teria que estacionar a cadeira de rodas
direitinha dentro de cada casa, de olhos fechados… E, para a cadeira caber nas casas, era só preciso que
alguém as desenhasse maiores. Ah, achas que não ia dar certo? Que, sentada na cadeira, Maria não ia
conseguir pegar na patela que se usa para marcar a casa? Mas, e se arranjassem uma coisa um pouco maior,
que ela pudesse alcançar? Um peluche velho ou um dado bem grande, feito de espuma ou em papel, por
exemplo? Dessa forma, enquanto uns pulavam, Maria rodava. Acho que seria superdivertido para todos!
Maria também poderia brincar com o aro! Ela poderia rodá-lo nos braços em vez de na cintura. E poderia
brincar com todos a muitas outras coisas: jogos, teatro, quebra-cabeças, desenhar, pintar, cantar, lançar
papagaios de papel. Ela poderia brincar na caixa de areia, se a caixa não tivesse um degrau alto. Poderia
mergulhar as mãos na água da fonte, se a fonte não fosse alta e rodeada de degraus.
E se Maria fosse uma menina de carne e osso e viesse morar na cidade onde tu moras? Ela conseguiria
brincar nas praças “de verdade” com a sua cadeira de rodas? Conseguiria sair de casa sozinha e circular
pelos passeios até chegar a uma praça? Nos passeios e praças que conheces, existem rampas? Os passeios
são planos ou cheios de buracos? Há brinquedos nas praças? Uma criança de cadeira de rodas conseguiria
brincar com eles?
Bem, já deves ter percebido que nas cidades reais, todos os passeios, praças, bibliotecas, igrejas, lojas,
casas, escolas, piscinas; todos os supermercados, museus, restaurantes, prédios, clubes, teatros, cinemas,
parques, circos, elevadores, empresas, comboios, autocarros, casas de banho — tudo isso precisa de ser
projetado ou adaptado para que todas as pessoas — pessoas com todos os tipos de necessidades —
possam entrar e sair, ir e voltar, descer e subir, sair e entrar, subir e descer, entrar e brincar, brincar e sair.
Enfim, todas as pessoas precisam de poder circular por todos os lugares de todas as cidades em segurança
e sem precisar de pedir a ajuda dos outros a todo o momento.
Todos os bebedouros precisam de ter uma parte mais baixa para que uma criança pequena, uma pessoa
anã ou em cadeira de rodas, enfim, todos possam matar a sede.
Os locais que têm degraus precisam de ter rampas também. Isso é bom para quem usa cadeira de rodas e
para muitas outras pessoas: quem usa bengala, empurra um carrinho de bébé ou um carrinho de compras,
anda de patins, trabalha empurrando carrinhos de mão, de pipocas, de gelados. Os autocarros também
precisam de ser adaptados para que alguém em cadeira de rodas possa subir e descer deles com segurança
e sem ajuda.
O benefício é para todos: ninguém mais terá que fazer um enorme esforço para escalar degraus de
autocarros! Já pensaste como seria bom para as pessoas idosas, que não têm muita força nas pernas; as
que usam bengalas porque estão magoadas ou são deficientes visuais; as que são muito pesadas; as que
carregam bébés ao colo; as crianças pequenas? Todos teriam mais conforto e segurança.
Mas não adianta de nada mudar tudo isso se não mudar também o modo de pensar das pessoas. Há
pessoas que olham para alguém como a Maria com preconceito, pensando que, por causa da sua
deficiência, ela não consegue fazer nada sozinha. Lembras-te da irritação que ela sentia quando olhavam
demasiado para ela, como se não fosse uma pessoa como as outras?
E como ela se sentiu zangada no supermercado quando o rapaz colocou o pacote de maçãs nassuas mãos,
sem que ela lho pedisse? Assim como gostava de se vestir sozinha, mesmo tendo muita dificuldade, ela
também adorava vencer os outros desafios, fazer todas as coisas que pudesse por conta própria.
Nunca viste pessoas a circular sozinhas nas suas cadeiras de rodas nos supermercados, cinemas, lojas?
Nunca viste, na televisão, pessoas com deficiência física que ganham campeonatos de natação,
basquetebol, boxe, remo, futebol? Pois é: a deficiência não impede essas pessoas de fazer coisas
interessantes, de lutar para fazer aquilo de que gostam.
Cada pessoa que existe no mundo é única, diferente de todas as outras. E, ao mesmo tempo, cada um de
nós tem o direito de ser como é, de ser respeitado/a como é, e de poder ir e vir, entrar e sair, sair e entrar,
subir e descer, descer e subir, de onde quiser, para onde quiser, em segurança e em liberdade!
Franz-Joseph Huainigg
Meus pés são a cadeira de rodas
São Paulo, Scipione, 2011
(Adaptação