Um conto sobre a vida e a morte Prefácio Carol Gouveia e Melo soube encontrar uma pena de luz para escrever um conto sobre a vida e a morte. Conto que a criança vai ler, escutar: e tão difícil é dizer a um coração menino que a morte gera a vida, vida e morte são como a palma e as costas da mão… E Carol conta com poesia e doçura esta «história» difícil que tem começo na hora radial do nascer. Nascer em que berço? Que braços nos acolhem? O que podemos olhar? Desde o mar oculto do ventre materno, o continuar por tantos caminhos da Terra. … Até quando? Neste conto, a criança perguntará: Era uma vez… e depois? Depois… Há a memória do coração e o Sol abrangente de todas as respostas. O menino vira a sua mãozinha, a palma e as costas… E olha. Os olhos dos meninos são tão sábios no seu olhar, eles ensinam-nos tanto no cristal mágico da sua inocência.
Inocência da vida e da morte, comovente sabedoria. Matilde Rosa Araújo ÌÌÌ ESTA É UMA HISTÓRIA DE TODOS OS DIAS, sobre a vida e a morte, sobre a sua natureza, sobre a sua aparente falta de sentido e sobre a dificuldade que temos em as compreender. É uma história sobre o fim e o princípio, sobre os ciclos de criação e destruição. Era uma vez uma pequena aldeia, onde as crianças costumavam brincar na praça principal à volta de uma estátua de pedra. A estátua representava uma menina que estava vestida como as crianças que se divertiam à sua volta. Um dia, um menino, que estava a brincar com os seus amigos na praça, sentiu-se mal e foi para casa descansar um pouco.
Na cama, com o avô sentado ao seu lado, ele pensou como gostaria de estar lá fora com os outros e lembrou-se da estátua que todos os dias olhava para as crianças e nunca podia brincar com elas. — Como é que ela aguenta? — perguntou ao avô. — Ela nunca vai brincar como eu nem sentir os abraços e os beijos da sua mãe. Ele começou a pensar sobre tudo o que está vivo na natureza. Pensou no sol que faz crescer as flores e nos coelhos que saem das suas tocas para procurar comida e correr por aí, cheios de alegria. E depois, lembrou-se que um dia tanto as flores como os coelhos iriam morrer. — Avô, será que tudo na natureza tem de morrer? — Não — respondeu o avô, — as rochas e as pedras fazem parte da natureza, e não morrem… mas também não podem correr, rir e chorar como tu, porque não estão vivas.
O menino pensou novamente na estátua. «Será que eu gostaria de ficar ao frio e à chuva, não me poder mexer, não sentir e ficar ali para sempre? Não, não, prefiro estar vivo e sentir cada momento da minha vida!» O menino, olhando então para a sua mão, disse ao avô: — Vida e morte são como a palma e as costas da minha mão, não é? Na sua cabeça, o rapaz começou a compreender que não podia haver vida sem morte pois ambas estão intimamente ligadas. — Pois é — respondeu o avô. — Não há vida sem morte, e também não há morte sem vida. Uma gera a outra como se fosse uma roda que gira sem parar, criando um ciclo após o outro. — Como assim? — perguntou o menino.
O avô explicou: — No outono, as folhas caem e no inverno as árvores parecem mortas, mas há vida dentro delas. Depois vem a primavera e a vida germina novamente. No verão, as árvores enchem-se de frutos. Quando a árvore acaba o seu ciclo de vida, está pronta para morrer. Então desfaz-se e volta para a terra, tornando-se adubo para que novas plantas possam continuar a crescer num ciclo que nunca tem fim. Olhando pela janela, o avô continuou: — Na natureza existem muitos ciclos diferentes, todos interligados como que por magia.
O vento das tempestades espalha a vida pela Terra, transportando pequenas sementes para lugares longínquos. O sol dos dias radiosos e tranquilos permite que as abelhas polinizem as plantas, gerando novas vidas. Todas estas coisas são importantes e estão em equilíbrio, fazendo parte do todo que é a natureza. — E como é que é com as pessoas? É igual? — perguntou o rapaz. — Sim — respondeu o avô, — as pessoas pertencem a este todo que é a natureza e as suas vidas desenvolvem-se também por ciclos. Primeiro são bebés, que precisam dos seus pais para tomarem conta deles. Depois tornam-se crianças, jovens e adolescentes a caminho da fase adulta.
Quando se tornam adultos formam uma nova família e nascem novos bebés. Olhando para a sua bengala, junto à porta, prosseguiu: — Finalmente, ficam velhos e brincam com os netos. Às vezes, as pessoas velhas necessitam novamente que cuidem delas, porque o seu corpo já não funciona tão bem e o princípio e o fim são semelhantes. O avô, ao reparar numa borboleta branca que esvoaçava no jardim, perguntou: — Preferias ser uma borboleta colorida que pode voar e dançar no céu durante só uns dias ou um elefante, que vive várias centenas de anos na savana? O menino, baralhado, respondeu: — Não sei.
É que se fosse borboleta, a minha vida era mais curta, mas podia voar, ver a Terra lá do alto e deixar-me flutuar com o vento. Mas ser um elefante para observar a Terra durante tantos anos também me parece bom… — Pois é — replicou o avô, — porque tanto a vida do elefante na savana é majestosa como a da borboleta é bela. Na verdade, o importante é sabermos viver bem a vida que a natureza nos dá. Olhando para o neto, baixou a voz disse: — Assim como os animais, algumas flores duram um dia, ou uma estação inteira.
Enchem os nossos campos de beleza e de cor e é uma alegria vê-las. Ao inverso, algumas árvores podem viver trezentos anos ou mais. Estas árvores são imponentes e fazem parte de florestas que são os pulmões do nosso planeta. Com as pessoas, é igual, umas duram apenas uns dias, outras uns anos e outras ainda vivem até serem muito velhas. Com um sorriso, o avô olhou ternamente para o neto e continuou: — Mas, independentemente de quanto tempo vive, cada um de nós será sempre único e importante.
Cada um de nós contribui com algo de especial para o mundo e faz sempre parte de algo maior que é toda a natureza. A vida está cheia de mistérios que nós temos de aprender a observar, mesmo se, muitas vezes, não os compreendemos bem. — Pois é — disse logo o menino. — Às vezes a vida nem sempre parece justa. Porque é que algumas sementes de papoilas são levadas pelo vento para terras suaves e acolhedoras e outras para lugares onde é mais difícil crescer? — Ninguém sabe — respondeu o avô. — No entanto, mesmo quando nós não compreendemos, tudo tem um sentido na natureza. Tal como acontece com as papoilas — continuou — a vida pode parecer injusta para algumas pessoas.
Porque é que algumas crianças ficam sem pais? Porque é que algumas destas crianças são adotadas por pais que as amam e cuidam delas, enquanto que outras têm de aprender a crescer sozinhas? Pode parecer muito triste. Muitas vezes lutamos para compreender e controlar estes acontecimentos ditados pela natureza, mas será que é possível? Voltando-se para a janela continuou: — Há coisas que dependem da nossa vontade e pelas quais devemos lutar, mas outras escapam completamente ao nosso controlo. Por exemplo, por mais que eu faça, ou deseje, nunca conseguirei mudar a direção do vento que sopra lá fora.
Assim, devemos sempre fazer tudo que está ao nosso alcance para termos uma vida melhor mas, ao mesmo tempo, tentar aceitar as nossas limitações. — E quando as pessoas que amamos morrem? — perguntou o menino com um ar triste. — Quando morrem e desaparecem da nossa vista, é natural que fiquemos tristes porque já não podemos falar com elas, abraçá-las e tocá-las e sentimos muito a sua falta! — respondeu o avô. — Quando ficam tristes, algumas pessoas choram, outras querem ficar sozinhas. Certas pessoas ficam zangadas, outras precisam de companhia, de quem lhes agarre na mão e lhes taça festinhas.
Há muitas maneiras diferentes de estar triste. Mas temos de saber que, embora as pessoas que morreram já não estejam presentes com o seu corpo, continuam a viver na nossa memória e no nosso coração. — No entanto — acrescentou carinhosamente o avô para o seu neto — quando chega a nossa hora de morrer e deixamos o nosso corpo, tal como uma folha se solta de uma árvore e voa com o vento, achas que deixamos de existir? O menino refletiu durante um bocado e respondeu: — Não sei bem, mas lá no fundo sinto que existem coisas que não se tocam nem se veem. O avô parou um pouco para pensar, e depois acrescentou: — O amor não faz distinções: ama as coisas como elas são sem nunca as julgar. A um amor que nos enche a alma de esperança, de alegria, de compaixão e compreensão, um amor que consegue ser infinito na sua capacidade de dar, a esse amor chamamos por vezes Deus.
Como para o tirar dos seus pensamentos, a voz terna da mãe ouviu-se à entrada da porta. — Queres que te faça companhia e te leia uma história? Ela estava a olhar para ele com um grande sorriso e o menino sentiu-se muito reconfortado. Então, com carinho, o avô disse: — Quando estas dúvidas nos atormentam, há sempre um lugar onde nos podemos refugiar.
Esse lugar é o amor. Podemos encontrá-lo em todo o lado: nas mães e nos pais que nos abraçam, nos dão beijos e tomam conta de nós; nos avós que têm muitas histórias para nos contar sobre esta coisa chamada Vida; no sol que faz crescer as flores, nos cães que nos lambem a cara e nos olham com olhos de quem diz “adoro-te!”; nos amigos com quem brincamos e nos ajudam a levantar quando caímos e nos magoamos; e, claro, em nós próprios quando somos bons para as pessoas, para os animais e para as plantas, ou até quando somos bons para connosco. Cada vez que damos o nosso amor a alguém e recebemos o seu amor, estamos a criar essas memórias!
E tu, que estás a ler esta história, tens boas memórias dentro de ti? Conta-me! Carol Gouveia e Melo Viva a vida – Um conto sobre a vida e a morte Lisboa, Climepsi – Sociedade Médico-Psicológica, 2007 (Adaptação)